Ana Paula Daniel
Júlio Cézar Zandonaidi
Priscila Ventura Trucullo
Thiago Augusto de Freitas Machado
Thiago Henrique Alvarado
O texto a ser analisado aborda a questão contemporânea sobre as discussões acerca da “diferença” e as inúmeras ciladas que o trato com o conceito e sua formação histórica podem trazer para a esquerda militante, que intenta alcançar uma diminuição da desigualdade através da busca pela igualdade baseada no “direito à diferença”. O autor enfatiza, principalmente, três tipos de cilada, a cilada semântica, a cilada cultural e a cilada da teoria e prática. O artigo toma como ponto de partida uma pesquisa de campo desenvolvida pelo autor, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, que durante anos de 1986/1987 aplicou questionários entre a população de classe média paulista. Contudo, a pesquisa não se restringiu ao período em questão, antes, traçou comparações com a sociedade inglesa dos anos 1940, que Pierucci generaliza sob o signo de conservadores, apesar de ele próprio apontar que a pesquisa de Hans J. Eysenk, baseou-se em questionários aplicados à 250 conservadores, 250 liberais e 250 socialistas. A partir das observações entre as duas pesquisas, ele pode perceber muitas semelhanças e permanências entre as duas sociedades, no que tange à mentalidade conservadora dos entrevistados. Apesar de basear-se no critério político para seus procedimentos de pesquisa, seu argumento pautar-se-á em critérios de sociabilidade e cultura para a explicação do fenômeno.
A origem do discurso da afirmação da diferença está nos grupos políticos de direita, mas especificamente da ultra-direita do final do século XVIII, tendo portanto, raízes na reação da direita por ocasião da Revolução Francesa, o que gerou a chamada Restauração, que utilizou-se do discurso das tradições, para defender costumes historicamente construídos e legitimados como naturais. Como exemplo, a hierarquização da sociedade, que baseava-se no princípio de que todos os seres humanos nascem diferentes, que tem determinadas funções na sociedade, que a desigualdade social era algo natural, pois baseava-se na natureza humana da diferença. Tal discurso da natureza da diferença, nós podemos encontrar em fins do século XIX e começo do XX, que pautavam-se no “dado biológico” para justificar a legitimidade do racismo, que tratava a diferença preconceituosamente, respaldado pelo valor “cientifico”. Segundo o autor, a nova esquerda, abandonou o discurso da igualdade, aquele característico da Revolução Francesa, e apropriou-se do discurso da diferença, tentando dar à ela novas significações, afim de trilhar o caminho para a igualdade, pois como frisa, Joan Scott, a verdadeira igualdade reside na diferença, dessa forma, a esquerda vem empunhando a bandeira do “direito à diferença”.
Tal constatação nos leva a refletir sobre uma das ciladas presente neste discurso, privilegiadamente acadêmico e portanto, elitista, que é a questão da cultura da direita presente em todos os ramos da sociedade, como foi observado em sua pesquisa, historicamente construídas e fortemente arraigadas no imaginário da população. O autor constata que existe certa circulação de concepções da direita em determinados contextos específicos, entretanto não só em relação à concepções políticas, mas também, e principalmente, seus valores apropriados para os espaços de sociabilidade, mesmo que espaços distantes entre si. Logo, percebemos, que a restauração da direita esteve muito mais ligada à uma restauração social do que política, desse modo ela conseguiu interpenetrar toda sociedade (sejam eles de direita ou de esquerda) através da cultura, enraizando toda uma gama de valores direitistas que acabam, através da retorsão do discurso da esquerda, por reafirmar a diferença em seu sentido destrutivo e negativo, fazendo com que a sociedade associe diferença à desigualdade, sendo um ponto muito forte na justificativa do preconceito por parte da nova direita.
Neste ponto, torna-se necessário apontar para a apropriação do discurso da diferença da esquerda pela direita, já que aquele discurso racista baseado no fator biológico tornou-se algo ultrapassado e superado. A direita, baseada nas ciladas semânticas do discurso da esquerda, criou o que o autor chama de neo-racismo, respaldado no “dado cultural”, apresentado como irredutível e servindo à fins segregacionistas e preconceituosos, argumentando o direito à diferença, como direito à distância de certos grupos, como direito ao preconceito, como direito de defender toda sorte de idéias, mesmo que racistas e preconceituosas etc. Segundo Pieirruci, há uma ambivalência nos discursos atuais da esquerda, no que diz respeito à diferença. Isso implica uma questão muito importante que é a transformação do discurso da diferença, enquanto algo afirmativo para se alcançar a igualdade, em rejeição da diferença, pois o autor constata, que antes do racismo (rejeição fóbica da diferença) vem a obsessão com a diferença que podemos identificar atualmente nos movimentos sociais, que, hoje, se proliferam sob o signo da esquerda, um dos maiores espaços de discussão deste ponto, é justamente, o meio acadêmico. A cilada está justamente nos termos diferença/desigualdade, que não são correlatos, e sim apropriados nesse sentido, ou seja, é muito difícil afirmar a igualdade nas diferenças dentro de uma sociedade culturalmente conservadora, que assimila a diferença como sinônimo de desigualdade, isso quer dizer que fica muito mais complicado se livrar dos valores da hierarquização; dificílimo defender uma base igualitária que privilegie o direito à diferença, mesmo que seja possível em bases teóricas, isto é, a dificuldade de aliar teoria e prática é mais uma cilada.
Tal constatação leva-nos a enxergar a dificuldade de se levar o discurso teórico acadêmico para a prática efetiva, ou seja, transformar-lo em senso comum capaz de ser assimilado no cotidiano das pessoas simples, o que nos leva a mais uma cilada que é a necessidade da intelectualização para o melhor entendimento deste jogo semântico contraditório, caindo novamente nas amarras da elitização. Exemplificando tal dificuldade, o autor apresenta-nos o caso Sears, onde a EEOC acusou a empresa Sears de não dar condições iguais quanto a oportunidade de empregos para homens e mulheres no cargo de vendedor comissionado. O caso apresenta características típicas das contradições no discurso do neo-feminismo. Tal linha de pesquisa baseia-se no fato de que as mulheres foram historicamente excluídas dos postos de trabalhos masculinos, gerando a desigualdade entre os gêneros, ressalva, porém, que existe diferença de interesses entre homens e mulheres. O binômio igualdade/diferença quando tratado como antítese pela parte da defesa acabou gerando contradições no discurso da parte acusadora, a historiadora Kessler-Harris, tal falha foi aproveitada pela defesa representada pela historiadora Rosenberg.
Para Perucci, o teorismo pós-moderno focado nas diferenças dicotomicas entre os grupos forma ilhas sociais, onde a mistura torna-se um elemento perturbador. Isso contudo carrega em si uma postura de que cabe aos próprios grupos a tarefa de desenvolver-se social/economica e politicamente. Desconsidera-se todo o processo histórico necessário para a formação das realidades. Desloca-se o entendimento da realidade para um determinismo de caracteristicas físicas, psiquicas, culturais, sociais, desvinculando isso das questões políticas e econômicas. Isso desvirtuaria portanto o próprio entendimento de formação da realidade clássicos advindo da esquerda, uma vez que colaboraria para o cartesianismo tipícos do método científico moderno defendido pela direita.
Portanto, o autor, enquanto militante da esquerda, acaba por reconhecer que apesar do discurso da diferença ser academicamente possível e ter plausibilidade na realidade, por ser contraditório é na prática inviável, pois seria necessário desconstruir o discurso binário da igualdade/diferença, o que é muito complexo, pois o problema é justamente transpor a discussão acadêmica para o cotidiano . Dessa forma, ele aponta uma volta ao discurso da igualdade, volta por que é exatamente este discurso que a direita sempre temeu, logo, pode ser o único caminho possível para empreender lutas efetivas e conseguir obter a adesão da sociedade em tal empreitada pelos direitos à igualdade de fato, não excluindo as diferenças, mas sim, superando as desigualdades.
Texto: PIERUCCI, Flávio Antonio. Ciladas da diferença. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(2): 7-33, 2 sem. 1990.