sexta-feira, 23 de setembro de 2011

A Cultura no Mundo Atlântico: entre a estabilidade e a mutabilidade

Andréa Manfredi da Costa
Isadora Remundini
Marina Casadore Bianchi
Pollyanna Souza Menegheti

John K.Thornton- historiador estadunidense dedicado aos estudos da chamada diáspora africana - inicia sua abordagem da cultura Afro-americana afirmando-a enquanto elemento de maior homogeneidade, frente ao conjunto das diversas culturas africanas, visto que aqui conviviam etnias que se encontravam apartadas no outro continente.
O trabalho é fundamentado no conceito de cultura e, essencialmente, no conceito de dinâmica cultural; o primeiro termo, entendido em sentido lato como o conjunto de elementos em uma dada sociedade, tal qual o parentesco, a arte, a linguagem, a formatação política, a religião ou a estética; o segundo, como as transformações às quais estão suscetíveis estes elementos e que se dão de duas formas: 1) Ocasionadas por modificações na dinâmica interna 2) Ocasionadas pela interação com outras culturas.
Lançadas as bases de sua análise, Thornton se vale da apreciação das vivências culturais no continente africano e na transposição desta cultura para o mundo atlântico, formando assim, uma compreensão balizada, simultaneamente, pela amplitude do modelo teórico, mas sustentada pela apreciação das relações específicas entre as culturas, em menor escala – o que pode ser notado no seguimento do texto em que avalia as interações culturais no âmbito da linguagem, da estrutura social e da estética.
No que concerne à questão da linguagem, o autor afirma que a mesma, a partir do contato com povos europeus, não só no novo mundo, mas no próprio território africano, sofreu modificações e variações, tendo que se adaptar de alguma forma para que houvesse o mínimo de comunicação entre povos africanos de diferentes nações, e dos mesmos com os europeus. Dentre todos os elementos culturais, a linguagem é o mais estável, mesmo assim, o conjunto de línguas africanas foi o mais frágil para sobreviver e se desenvolver no novo mundo. As línguas africanas desapareceram, sendo substituídas por uma língua crioula, ou por uma forma adaptada da língua européia. Isto pode ser explicado pela “arbitrariedade essencial das línguas”, ou seja, quando muitas línguas que não se assemelham em estrutura e vocabulário, o resultado provavelmente será o nascimento de uma língua franca, para que cada indivíduo precise aprender apenas uma segunda língua para se comunicar.
No que diz respeito às formas de preservação da língua o autor destaca o canto, já que os escravos, muitas das vezes, cantavam em suas próprias línguas. A música era uma forma de expressão de um nacionalismo que, de certa forma, provocava orgulho e não exigia esforço de aprendizado. Com isso, percebe-se que as línguas africanas sobrevivem até hoje no Caribe e no Brasil, por exemplo, no contexto da música e de cânticos religiosos.
Muitos antropólogos enfatizam a perda da cultura africana durante a travessia atlântica, bem como a desestruturação das organizações sociais por meio de parentesco. Thornton acredita que conferir muita atenção à questão dos laços de consangüinidade nas relações sociais é ser limitado. Segundo o autor, havia, na África, muitas formas de organização pessoal sem referência a parentescos ou laços consangüíneos, sendo que o exército pode ser considerado o maior exemplo disto, visto que estes eram organizados como unidades corporativas, não se restringindo a laços familiares. Além de organizações de cunho político, as organizações religiosas também não tinham limites impostos pela questão do parentesco. Sendo assim, quando os africanos desembarcam no outro continente, como escravos, as organizações baseadas nesses modelos africanos deram manutenção a essas estruturas sociais, que conseguiram, assim como a linguagem, sobreviver fora do continente africano, mesmo que de forma modificada.
De todos os elementos da cultura, a estética apresenta-se como o mais instável. Porém, no mundo atlântico os elementos culturais africanos foram os que mais resistiram, como, por exemplo, a música e a dança africana que exerceram importante influência na musicalidade afro-americana. No processo de transferência e de transformação de estéticas africanas na América, é importante considerar as condições de trabalho dos escravos, já que nem todos eram qualificados para realizar trabalhos mais complexos e também havia algumas matérias-primas que não estavam disponíveis.
No mundo atlântico o contato de diversas culturas possibilitou misturas de estéticas. A estética não é rígida como a linguagem e pode incorporar novos elementos sem prejuízos. Geralmente as pessoas são bastante flexíveis em adotar elementos estéticos diferentes. Esse contato gera um processo de troca, mesclando tradições estéticas entre africanos e europeus.   
Thornton acredita, portanto, que no mundo atlântico a cultura africana não apenas sobreviveu intacta em alguns traços, mas permaneceu, justamente devido à sua flexibilidade e capacidade de adaptação, sendo capaz de influenciar também a cultura atlântica. Sendo assim, conclui-se que o cerne da questão proposta pelo autor é a natureza da interação cultural e a transformação dos elementos africanos para se adaptarem às novas condições impostas pelo mundo atlântico.

THORNTON, John. As transformações da cultura africana no mundo atlântico. In: _______. A África e os Africanos na formação do mundo Atlântico (1400-1800). Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 279-311.

sábado, 17 de setembro de 2011

Um olhar sem “o complexo da diferença” sobre as relações de comércio, poder e identidade dos portugueses para com a África Ocidental

Ana Paula Svirbul de Oliveira
Carlos Alexandre Silva Rodrigues
       Fernando Marques de Mello Júnior     

A Historiadora Marina de Mello e Souza, especialista em História da África, contribuiu para a historiografia brasileira através do seu livro “Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo”, pois ocupou um espaço permeado por poucos estudos, já que os historiadores têm mostrado pouco interesse em produzir uma historiografia sobre a África, ou seja, pouco se estuda ou é quase inexistente nos cursos de graduação em História, um estudo que busque compreender e entender as tradições africanas, as quais fazem parte da história de formação da sociedade brasileira que não se constituiu apenas dos costumes europeus.
Em linhas gerais, podemos dizer que o livro “Reis Negros no Brasil Escravista – História da Festa de Coroação de Rei Congo” se destacou por seu mérito em situar a história africana pontuando o funcionamento da organização social dos diferentes povos que povoaram a parte Centro – Ocidental da África, a conflitante relação entre linhagem e escravidão e o papel do tráfico transatlântico na história dos reinos do Congo, do Ndongo e de Matamba.
Analisando especialmente o capítulo III, intitulado como “Povos em Contato – Comércio, Poder e Identidade”, presente dentro do livro citado acima, vemos que Marina de Mello e Souza traz á tona uma reflexão interessante que têm como objetivo expor o domínio exercido pelo europeu frente aos povos africanos assim como mostrar uma África desconhecida, a qual foi habitada por povos falantes de línguas bantos e acabaram por entrelaçar sua história com a dos  portugueses, europeus e brasileiros.A argumentação trazida por esse capítulo se divide em dois momentos importantes, os quais vão ser trabalhados ao longo desse post.
 É preciso refletir como os portugueses puderam estabelecer relações do Congo a Angola, relações essas que se vertebraram na expansão do tráfico, assim como produziram resistências e alianças por parte de diferentes povos africanos.
Sabe-se que o continente africano se dividia em vários reinos com etnias diferentes entre si e por isso enfrentava um estado de batalha freqüente. E os portugueses tinham conhecimento deste estado permanente de guerra no continente africano e se faziam valer deste artifício para firmar e desfazer alianças com quem lhe fosse mais vantajoso e no momento em que lhe parecesse a melhor alternativa.
Justificando suas incursões pelo território africano em busca de metais preciosos estava a cruz da santa igreja católica que visava a conversão do maior número possível de almas. Ao mesmo tempo, o comércio vital para a sobrevivência de Portugal – já que as colônias, e especialmente o Brasil, se apoiavam sobre as costas dos negros africanos e que, a metrópole, da mesma maneira, se apoiava na produção da colônia – era assegurado pelos comerciantes que organizavam entrepostos comerciais na África - principalmente a região do Congo e de Angola - para a aquisição e venda de mão-de-obra africana para a colônia e, em alguns casos, para regiões da própria África.
Nesse sentido, escreve Marina de Mello e Souza que “a sanha portuguesa por escravos e a sua obstinação em abrir caminho para o interior, em direção às supostas minas de metais preciosos, respaldadas pelo discurso religioso que justificava o uso da força para a conversão de nativos resistentes ao cristianismo (...) provocou violenta reação armada por parte dos povos que viam sua autonomia ameaçada”. (P.107-108) Malgrado o posicionamento de revolta de alguns povos, outros, porém, interessados em alianças que fortaleceriam seus exércitos com as preciosas armas de fogo portuguesas, aliaram-se aos mesmos e aceitaram as condições que lhes eram impostas, a saber, o pagamento de tributos em forma de escravos e a concessão de privilégios comerciais.
Contudo, o aspecto mais interessante no trabalho da historiadora Marina de Mello e Souza está no sentido de que em meio às batalhas, alianças, ao sangue derramado e a efetivação dos compromissos, criaram-se imagens de líderes que, tiveram sua figura divulgada na própria África, como também do outro lado do Atlântico.
Nesse sentido, muito ilustrativo é o caso da líder Njinga Mbandi, - mais interessante, a nosso ver, do que o caso de D. Afonso I, o rei do Congo – que conduziu os povos ambundos-jagas, que habitavam as regiões do Ndongo e Matamba, entre os anos de 1623 e 1663. Njinga ascende ao trono após seis anos de batalha com seu irmão ngola,já que  desde a morte do pai de ambos, se  estabelece uma série de alianças e, ao que parece, muitas vezes confrontam os portugueses para obter vantagens para seu povo. E nesse aspecto a historiadora Marina de Mello e Souza é clara: “é nesse quadro de expansão do tráfico, implicando o avanço português para o interior do continente, intensificação das guerras entre diferentes povos bantos e o estabelecimento de alianças políticas e econômicas, que se insere o reinado da rainha Njinga, em suas diferentes fases, numa gama que vai da hostilidade total a aproximações com a administração portuguesa e os comerciantes europeus”. (P.108-109)
A relação da rainha Njinga para com os portugueses nos é apresentada de maneira bastante elucidativa pela Marina de Mello e Souza, já que esse relacionamento foi permeado por questões de poder, interesse e identidade e exemplifica também o modo como os portugueses puderam conquistar territórios e comercializar escravos e  até mesmo colocar o processo cristianização para diversas populações da parte central da África .
A imagem da rainha guerreira atravessou o atlântico e, aqui no Brasil esteve – e ainda continua – ligada à resistência bravia e à autonomia dos angolanos, e, ainda hoje, a rainha que chegou a espantar os portugueses, quando liderou a embaixada que deu ao irmão ngola do Ndongo, enviou ao governador de Luanda, por sua habilidade para tratar questões políticas e capacidade de liderança, tem em Angola lugar na galeria de ilustres como um símbolo nacional de resistência à ocupação européia.
A rainha Njinga,chefe de Matamba (região da atual Angola) nos foi apresentada como uma das personagens mais conhecidas da história centro-africana,mas sua consagração como importante sujeito na história de relações ente africanos e portugueses, nos remete a uma questão mais profunda que foi o fato de ter tido uma conturbada e complexa relação com os dominadores portugueses,mas atualmente é lembrada nacional desse país africano.
Assim, pode-se supor a partir do exemplo da rainha Njinga que, conforme analisou com enorme destreza a historiadora Marina de Mello e Souza, “eventos históricos podem ser congelados, mitificados, ritualizados e evocados na constituição de identidades.” (P.114)
Após nos debruçarmos sobre um caso especifico dentro dos relacionamentos dos portugueses para com os povos da África central, é importante destacar alguns pontos-chaves sobre o tráfico e as estruturas de poder. Vale colocar a fala de Marina sobre a escravidão em termos gerais “a escravidão é uma forma de exploração do trabalho efetuada por diversas sociedades, em diferentes momentos da história da humanidade e com características especificas de cada época e lugar.” (P.114)
É interessante notar que os portugueses ao realizar o tráfico de africanos, se apropriaram de uma lógica já existente dentro das próprias sociedades africanas e que ocorria muito antes da chegada dos portugueses á costa da Guiné. Partindo desse principio, podemos citar assim como o fez Marina de Mello e Souza, os estudos de Manolo Florentino questiona o fato de ao se pensar “o tráfico como um fluxo continuo e barato”, não se perguntou “o porquê de o continente negro ter oferecido escravos durante uma longuíssima duração a custos tão baixos” e assim conclui que há uma forte ligação entre o tráfico interno da África e o tráfico atlântico. (P.116)
Como conclusão á respeito desse texto, pensamos que a historiadora Marina de Mello e Souza merece nosso reconhecimento ao apresentar a história da África, de uma forma diferente da qual estamos acostumados, que é o continente africano sem voz ou uma história própria a ser contado, afinal o trabalho do historiador é resgatar as lembranças ou memórias esquecidas e dessa formar dar voz aos sujeitos da história. Marina de Mello e Souza nos revela as sociedades africanas complexas, com as quais os portugueses e os europeus em geral tiveram contato e desse modo buscaram modos para se adaptar as características e hábitos enraizados de povos que tinham o interesse de se relacionar.

SOUZA, Marina de Mello. Povos em Contato: comércio, poder e identidade. In: _______. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação de Rei do Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 97-135.

Trocas Culturais: transformações no sistema social africano do século XVI ao XIX

Francisco de Assis Sabadini
Heitor Benetti
Hernane Pereira Junior
Jean Bruno Urgel Branco
Ricardo Augusto Aidar Abib

O objetivo do texto estudado é demonstrar como ocorreu a expansão do tráfico de escravos na África Centro-Ocidental a partir das diferentes formas de contato entre os europeus e os africanos, assim como demostrar as consequências de tal expansão.
            No auge do processo de expansão do tráfico esteve em prática uma complexa rede de interesses que criavam e fortaleciam alianças e mercados, abriam rotas, e enriqueciam ambas as coroas seja com escravos e pedras preciosas para europeus, seja com tecnologias, indumentária, conhecimento, escravos, apoio militar que garantiam prestígio para os aliados africanos. Houve, também, chefes locais e demais grupos que, em dado momento, preferiram não se aproximar da cultura européia; optaram pela guerra contra os interesses portugueses em seus domínios. Assim, explicam-se as várias rupturas de alianças devido aos interesses do momento dos novos governantes e os conseqüentes fechamentos de mercados. Um bom exemplo é a rainha dos ambundos-jagas, Njinga. Em um momento em que o que governos instáveis eram comuns, esta rainha se manteve no poder entre 1623 e 1663, pois soube adaptar-se quando necessário. Sendo ora aliada, ora inimiga dos portugueses, ora praticando, ora não o comércio de escravos, adotando ou repudiando o cristianismo, pode demonstrar um grande potencial de adaptação aos diversos contextos específicos. Ela é um típico exemplo de que havia a possibilidade de resistir ao europeu quanto os interesses divergiam.
            Durante a leitura do texto notamos o emprego de vários termos referentes à organização política que nos obriga a indagar se os conceitos podem ser facilmente aplicáveis à realidade da África Centro-Ocidental, sem uma ressalva prévia explicitando as particularidades próprias da região. Pois, a autora ao explicar o que era ser escravo naquele local, apresenta as devidas características divergentes das da realidade das colônias americanas. A relação entre escravo e senhor não era baseada na “exploração máxima do trabalho”. O escravo tinha várias possibilidades de mobilidade social. Muitas vezes, ele era apenas um instrumento para aumentar o prestígio de seu senhor. Um homem poderia se tornar escravo “dentro ou fora de seu grupo de origem”. Ele poderia cometer algum crime, poderia ser comprado, ou poderia ser aprisionado em guerras. A autora também explica que a organização social destes povos era pautada no sistema de linhagens. Sendo assim, quem não estivesse dentro da linha de parentesco não precisava ser tratado como igual, podendo se tornar escravo de outra linhagem. Se um membro de uma linhagem cometesse um crime, ele poderia se tornar escravo do mesmo grupo, mas seria considerado um estrangeiro e estaria submetido a uma incorporação à linhagem “na condição de dependente”.         
O assunto trabalhado no texto deixa evidente que a escravidão existia como instituição bem consolidada antes mesmo do contato entre a costa africana e os portugueses. Não obstante, as normas culturais africanas foram fortemente modificadas à partir do processo de interação entre os grupos autóctones e os portugueses, o que permitiu que ocorressem alterações no modo de “produzir” escravos.
            Se pensarmos a escravidão na África antes da participação portuguesa e a consideramos em todas as suas implicações econômicas, sociais, simbólicas e políticas, será de fácil compreensão a série de mudanças que esse sistema sofre ao entrar em contato com um novo sistema econômico, social e político. Após esses dois mundos se interpenetrarem, uma nova orientação passou a organizar o antigo modelo africano, transformando-o no moderno escravismo transatlântico.
            A nova situação emergente acarretou transformações profundas na estrutura social e econômica de ambos os povos. Por um lado os portugueses passaram a desempenhar uma nova forma de economia através do comércio e utilização da mão de obra escrava, por outro as comunidades africanas modificaram suas leis e costumes referentes às formas como homens se tornavam propriedade de outros homens. Guerras entre tribos com a finalidade de capturar escravos se tornaram mais frequentes e costumes punitivos se tornaram mais rigorosos no seio das próprias tribos, penalizando delitos leves com a perda da liberdade. Uma ressalva deve ser feita, antes mesmo do encontro com o europeu ter transformado as relações no interior do continente africano, outras mudança já haviam ocorrido séculos antes em função da procura de escravos pelo islã. Essas mudanças já estavam muito sedimentadas quando os portugueses aportaram na costa africana, eram transformações no plano geográfico, político, cultural e religioso.
A idéia geral que permeia a abordagem da autora evidencia as transformações operadas no continente africano após o contato com os portugueses. Neste contexto a instituição escravista existente na África durante este período não pode ser negligenciada para o entendimento do sucesso do tráfico atlântico. As trocas culturais foram responsáveis por migrações dentro do próprio continente, pela ascensão e queda de chefes, fusão de tribos, criação de identidades, divisões e reorganizações no mapa político. Tal processo trouxe resultados importantes para a modelagem política, cultural e econômica do continente africano.

SOUZA, Marina de Mello. Povos em Contato: comércio, poder e identidade. In: _______. Reis Negros no Brasil Escravista: história da festa de coroação de Rei do Congo. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 97-135.

quinta-feira, 8 de setembro de 2011

A África Escrava

Ana Carolina Robaina
Gabriela Bassan Piedade
Gislaine Dedemo
Henrique Franco da Rocha

Paul Lovejoy discorre acerca do processo de escravização desenvolvido no continente africano antes mesmo do século XVI. A escravidão era tida já como uma instituição legalizada por leis e pelos costumes. Os escravos eram utilizados como mercadorias de exportação, assim como também como trabalhadores cativos dentro do próprio território africano. O islamismo apresentou uma forte influência sobre o continente da África, não só por representar-se como um forte mercado externo de escravos, mas também por fazer com que seus princípios religiosos fossem assimilados, principalmente os referentes à escravidão.
O autor apresenta algumas hipóteses acerca da quantidade de escravos que foram comercializados em determinados períodos de tempo e espaço, dados que ele não confirma por falta de documentação adequada, no entanto, Lovejoy usa esses cálculos no seu próprio trabalho, mas esclarece que o mais importante é salientar que havia uma demanda por escravos no mundo islâmico e esta era regular, e isso possibilitava um contato permanente entre as sociedades muçulmanas e as sociedades subsaarianas. Mesmo que os números incertos venham com o aviso do autor sobre eles, não parece razoável trazer dados que não são certos para confirmar suposições.
O texto traz algumas considerações acerca do processo de escravidão africana que deixou claro como se dava a escravidão nesse continente. Os governos africanos conseguiram manterem-se autônomos politicamente e culturalmente, pois a influência islâmica deu-se de forma gradual e não como produto de uma dominação imediata e intensa. Os fatores externos contribuíram para consolidar e intensificar o comércio de escravos, contudo, os fatores internos foram muito mais importantes e decisivos, pois a obtenção de escravos estava diretamente relacionada às guerras políticas travadas internamente por opositores políticos locais. Entretanto, a exportação e as receitas podem ter estimulado a escravização, porém, não seriam estes os desencadeadores do processo em si.
Os escravos eram frutos de guerras internas, assim como também de razias, ou seja, invasões aos territórios vizinhos. A captura de escravos dependia de vários fatores como: esgotamento da população, fugas destas, fortificação de cidades, fatores geográficos e climáticos. Lovejoy traz relatos que comprovam que aqueles que se baseavam nos princípios islâmicos acerca da escravidão acreditavam que os povos formados por muçulmanos livres não deveriam ser escravizados, enquanto que escravizados deveriam ser somente os pagãos descrentes e os que não haviam sido executados quando capturados.
A internalização de atitudes muçulmanas relacionadas à escravidão foram assimiladas por comerciantes e governantes africanos que passaram a utilizar os escravos da mesma forma que o eram no mundo islâmico. Desta forma, transformaram-os em administradores, concubinas, soldados, empregados domésticos e trabalhadores agrícolas. Esta última função foi mais tipicamente utilizada na África subsaariana quando comparado às regiões muçulmanas antes de 1600. Esses escravos produziam para seus senhores e não tinham oportunidade de prosperarem economicamente e nem socialmente.  Quanto ao tipo de plantation empregada nessas comunidades compostas por trabalhadores escravos não há um consenso dentro da historiografia. Alguns pesquisadores acreditam que eram da mesma natureza das plantations americanas enquanto que outros acham que eram mais parecidas com a agricultura do tipo feudal. Os escravos também eram usados para a extração do ouro e do sal.
Na África muçulmana durante a Idade Média os escravos não eram uma classe muito bem definida e estes podiam até mesmo obter uma posição satisfatória em termos tanto social quanto material. Contudo, o trabalho escravo era de substancial importância para o desenvolvimento da economia. Os ataques para a captura de escravos era uma preocupação constante. Muitos escravos eram escravizados durante esses ataques, mas boa parte era executada ou morta durante o processo de aprisionamento. Famílias e comunidades inteiras eram destruídas. A fome e a miséria eram condições as quais as vítimas estavam sujeitas. A preferência era pelas mulheres, pelas crianças e pelos eunucos, sendo assim, os muitos velhos, muitos jovens e até mesmo os homens adultos eram executados. Enfim, a ameaça dos ataques, da escravização e até mesmo da morte faziam com que muitas pessoas se submetessem ao Estado, portanto, aceitavam pagar impostos regularmente para que não sofressem a violência do processo e da própria escravidão.
Lovejoy expõe dados acerca das origens do comércio de escravos realizado por portugueses a partir do Atlântico. Esses portugueses utilizaram os escravos da mesma forma que os muçulmanos já os utilizavam, dispondo pra serviços domésticos, produção agrícola e, até mesmo, faziam comércio de uma região a outra. Os portugueses desejavam obter escravos e ouro, mas também estavam dispostos a comercializar outros produtos, como pimenta e marfim. O autor fez uma boa analise da situação do português na África e retirou dele toda a responsabilidade pela escravidão, deixando claro que os portugueses ampliaram o comércio e não modificaram em nada a relação da escravidão e sua conduta.
Por fim, o autor explica que o processo de escravidão foi sofrendo transformações com o passar dos anos. E que a participação dos portugueses contribuiu também para que a escravidão passasse de sua forma mais primitiva, ou seja, quando esta estava relacionada à conflitos travados entre grupos familiares para uma atividade institucionalizada. O processo passa então a ser regido por uma relação de mercado e demanda, e desta forma o “produto” da escravização transforma-se também em um produto de exportação comercializado pelo continente Africano.


LOVEJOY, P. Nas fronteiras do Islã. IN: _______. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 59-85. 

África: continente marcado pela escravidão

Claudio Armelin Mellon
Dario Polachini Neto
Felipe Oliveira Martins
Francisco Jose Silva Barros
Victor Manuel Nogueira Santos Junior


“A escravidão já era fundamental para a ordem, política e econômica de partes da savana setentrional, da Etiópia e da costa oriental africana havia vários séculos antes de 1600.” Com essa afirmação, o (sociólogo, antropólogo, historiador, inglês/norte americano) Paul Lovejoy refuta a teoria de que os europeus iniciaram a escravização do continente africano. A escravidão era uma instituição ligada às tradições, costumes e até leis dentro da África, se dava de forma organizada, com o respaldo da lei e dos costumes. A principal mercadoria do comércio eram os cativos, que junto com o comércio de escravos formavam essa escravização. A tendência quanto a escravidão era expandir cada vez mais, tomando proporções mundiais durante a Era Moderna. O mundo islâmico que detinha o domínio do escravo, já que o principal mercado externo se dava no norte da África e no Oriente Médio.
            Havia apenas nove ou dez saídas de escravos para o mundo muçulmano. Esse tráfico muçulmano se mostrava relativamente pequeno, em questão de números, ao longo de um milênio, ou seja, não chegou a ter o mesmo volume do comércio de africanos do Atlântico no auge. Contudo, a costa africana, por mais que tenha sido fonte de alguns escravos, não teve absurda relevância no século XVI. Embora o tráfico fosse a principal fonte de comerciantes e governantes da África subsaariana, ela não se mostrava tão dependente dessa exportação, dando uma certa autonomia aos seus Estados.  Autonomia essa que provinha das demandas internas, e não das influencias externas nessa consolidação do modo de produção baseado na escravidão. O escravo passou a ser usado internamente.  
Se anteriormente a captura dos escravos era vista como uma prática ligada às guerras com o passar dos tempos essa noção foi passando por uma transformação. Isso se deu de acordo com a noção de que a guerra existia para que fossem capturados novos escravos. Ora por produto de guerra, ora por razias, de fato muito cedo na savana setentrional, a escravização de prisioneiros de guerra tornou-se uma prática aceitável, tornando, o escravo, um subproduto das atividades militares. Tendo por base essa análise das guerras dentro do próprio continente, é importante ressaltar que as regiões setentrionais da savana levavam vantagem militar sobre os estados mais ao sul; secas periódicas afetam as regiões setentrionais, obrigando grande parte da população se mover ao sul, deixando essas terras mais aptas a invasões assim que as condições climáticas voltassem ao normal.
            Com a expansão das empreitadas em busca de escravos as cidades passaram a se fortificarem, temendo invasões inimigas. Dessa forma foram crescendo as rivalidades entre as cidades. A questão geográfica exercia influência direta nas cidades, fatores ligados a vegetação e a disponibilidade de água eram de extrema importância para a manutenção dessas sociedades. A expansão do Islã tem um papel importante dentro do processo de expansão da escravidão na África. A concepção muçulmana da escravidão foi introduzida para a África Negra, disseminando os valores e tradições ligados à fé islâmica. Um desses valores é a proibição da escravização daqueles que professavam a mesma fé, ou seja, não era permitido a escravização de muçulmanos. “A razão para a escravidão é a descrença.” Nessas palavras, Ahmad Bãbã discorre sobre a lógica da escravidão muçulmana. Qualquer indivíduo capturado, alheio ao Islã poderia, segundo a ótica islâmica ser escravizado. Assim estava legitimada a prática da escravização e se protegiam os muçulmanos. A fé estabelece a união daqueles que compartilhavam a mesma crença em uma sociedade na qual ainda não existe a idéia da nacionalidade.
Antes dessa expansão para a África Subsaariana os escravos trabalhavam em setores da administração, as vezes atuando como soldados e as mulheres como concubinas. Com a instituição da escravidão na África Subsaariana os escravos passaram a ser incorporados à produção agrícola. Uma das possíveis explicações para esse fato é a questão geográfica, pois o clima era mais propício para as culturas ligadas à alimentação. É interessante pensar sobre a proporção de exportação de escravos, já que as mulheres se encontravam no topo dessa tabela, seguidas pelos “eunucos”, já que como eram castrados, a incerteza da procriação terminava por ali.
Na opinião do autor, portanto, a entrada dos europeus na África causou impacto profundo na sociedade ao transferir para lá a lógica da disputa de mercados e a desigualdade social em maior escala. A configuração e surgimento dos reinos africanos estão, dessa maneira, intimamente ligados à entrada européia na região. Lovejoy tenta demonstrar que a ins tituição da escravidão no continente africano, através do comércio atlântico, modificou todos os setores internos , nos locais em que ela se implantou. A produção econômica em algumas regiões da África passou a depender do trabalho escravo, o poder político o utilizava em grande medida  nos exércitos e o comércio externo de venda de escravos tornou -se uma importante fonte de renda para o continente. Nesse sentido, como demonstrou Lovejoy, a influência européia na África teria ajudado a disseminar a escravidão no próprio continente e implantar um modo de produção escravista.

LOVEJOY, Paul. Nas fronteiras do Islã. IN: _______. A escravidão na África: uma história de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 59-85.

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

O escravismo sob outra ótica


Bruna Fernandes
Leonardo Bachiega
Marcelo Fidelis

A tese central do livro de Robin Blackburn é estabelecer uma relação entre a escravidão colonial nas Américas com o advento da modernidade. No pensamento do autor, este novo sistema escravista era de caráter radicalmente novo se comparado com a escravidão antiga.
O primeiro ponto indicado para tal diferenciação é o caráter comercial deste novo modelo de escravidão. Segundo o autor, a escravidão do Novo Mundo torna-se intensamente comercial, sob o advento de uma sociedade civil; já a do Velho Mundo voltava-se principalmente para as necessidades do estado imperial. “Pode-se dizer que muitos escravos romanos foram vendidos por terem sido capturados, enquanto muitos escravos africanos que alimentaram o tráfico atlântico foram capturados para serem vendidos” (BLACKBURN, p. 23).
Um dos principais pontos analisado neste comercial da ‘nova escravidão’ é que o excedente de produção dos escravos era enviado a Europa para ser então consumido. Desse modo, todo esse processo, não só de envio, mas de conservação, de transporte e mesmo de próprio comércio, movimentava dinheiro. Ou seja, o escravismo gerava muitos empregos assalariados; salários estes que eram, por sua vez, gastos com as mercadorias produzidas pelos escravos, gerando, assim, um capital de giro de um recente mercado consumidor. Desse modo, o escravismo fora o baluarte dos Estados Modernos, já que a economia destes dependia da produção de suas colônias. E Portugal, na segunda metade do século XV, já possuía na sua economia um suporte no colonialismo; empregando elevadíssima quantia de escravos.
A Espanha, do mesmo modo, a partir da primeira década do século XVI realizara a extração da prata do Potosí, majoritariamente através de escravos negros e indígenas. Pode-se afirmar que, até o terceiro quarto do século XVIII, a demanda por negros escravos fora dominante, representando aumento e rentabilidade significativos.
O Estado, desse modo, arrecadava com o trato de escravos ao tributar as transações financeiras realizadas nos portos de suas colônias, e com o exclusivo colonial que impunha que toda a produção fosse levada ao porto de sua respectiva metrópole.
Outro ponto registrado por Blackburn, para a diferenciação entre os dois modelos de escravidão está ligado a sua composição étnica. Segundo o autor, a escravidão no Velho Mundo foi muito mais diversificada que a escravidão colonial nas Américas. Considerados como membros de uma espécie inferior e vistos como “bestas” irremediáveis, os negros passaram a ser identificados como vítimas adequadas para o trabalho nas plantations das colônias, reconhecidos pelo fato de serem negros, já que este era o argumento que então melhor se justificava.
Em linhas gerais, o autor procura fazer uma desconstrução da idéia que permeia boa parte da historiografia – a de identificar a escravidão com o tradicionalismo e atraso – apresentando-a como uma instituição flexível que, se associada com a descoberta e colonização da América, desempenhou um papel importante na transição e desenvolvimento da modernidade. Porém, apesar de sua importância nesta desvinculação, seu estudo permite alguns questionamentos.
O conceito de liberdade – maior advento da modernidade – não permeava a mentalidade dos escravos. Estes, por sua vez, reconheciam a instituição como legítima. As negociações e conflitos com os senhores baseavam-se mais nas condições precárias de trabalho que na ideia de liberdade.
Além do problema de conceituação, outro ponto pode ser questionado é a periodização. Na medida em que o próprio autor define a escravidão como uma instituição flexível, não podemos analisá-la como um sistema fechado. Ela não teria a mesma forma de organização durante os três séculos que esteve fincada no Novo Mundo.
O autor também peca ao concluir a introdução de seu livro dando a ideia de que analisará o que poderia ter acontecido, quais seriam as opções além da escravidão e o que deveria ter sido feito. Entretanto, tal análise soa mais filosófica, que de caráter propriamente historiográfico; já que, se formos pensar por um lado histórico, aquilo que já aconteceu não é passível de mudanças; não sendo possível, portanto, ‘fazer’ história com o que poderia, ou deveria ter sido.
Apesar das criticas, o autor alimenta de modo brilhante seu posicionamento, tomando para si a responsabilidade de abordar dois temas – escravidão e modernidade – aparentemente tão distintos, e sustentá-los numa relação sob uma ótica nada comum.

BLACKBURN, Robin. Introdução: escravidão e modernidade. In: ____. A construção do escravismo no novo mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 13-44.

Pensando o escravismo moderno


Ariane Fernandes Machado
Fernanda Brussi Gonçalves
Ícaro Dimitri da Costa
João Guilherme Pellegrini
Ricardo Sinigaglia Arruda

O escravo que veio para a América tinha como uma de suas principais funções o trabalho nas plantations, sendo obrigado a substituir seus laços culturais, não tendo mais direito à sua memória e não pertencendo mais à sua tribo, pois, inserido em uma nova sociedade, tinha contato com uma nova cultura, a “branca”. Não está à margem da sociedade, mas inserido nela, pois faz parte de um meio social em que é dominado enquanto seus senhores são dominantes. Isso não priva o escravo de ser produtor de cultura, levando em consideração a teoria thompsoniana que o reitera como parte da sociedade, nesse caso a do Capitalismo Mercantil. A ciência do século XIX veio a apoiar o regime escravista com as teorias raciais que fundamentaram que o negro era inferior ao branco, tendo aquele que passar por um processo de “clareamento da pele”, na reprodução com este, para que pudesse evoluir.  Ainda neste contexto, é preciso romper com a idéia tradicional de que o papel social dos escravos brasileiros se restringiu à produção. Dessa forma, de meras ferramentas ou mercadorias, eles consolidaram o Brasil como um estado que aglutinava diversas culturas. É curioso ressaltar a escravidão como característica comum não só no Brasil, mas também entre as próprias tribos africanas. Se os quilombos possuem semelhança com o estado oficial no que diz respeito à mão-de-obra, o modo de produção difere. Enquanto o estado brasileiro voltou-se para uma economia de plantation utilizando a mão-de-obra escrava para a monocultura, os quilombos desenvolveram uma organização social hierarquizada e voltada para a subsistência. Esta organização empresarial possuiu camadas bem definidas que configuram uma pirâmide, na qual o líder quilombola está no topo.
Quanto ao Barroco, surge na Europa na tentativa de enfrentar a disseminação do puritanismo. Blackburn defende que representou uma “modernidade alternativa” à ética puritana, crescendo mais nos países católicos do que nos protestantes e favorecendo uma visão controlada e santificada da sociedade civil. No Novo Mundo, o barroco colonial adquiriu um caráter sincrético, incorporado a objetos de devoção religiosa, temas indígenas e africanos, sendo usados o ouro e prata evidenciando a superioridade do valor simbólico sobre o da troca. Tais elementos provocavam restrições na dinâmica comercial entre sistemas escravistas rivais. Ainda sob seu aspecto sincrético, antecipou alguns elementos do crioulo. A cultura crioula surgiu da mistura de elementos europeus, africanos e ameríndios, que foram se afastando pouco a pouco das formas e modelos europeus dentro da dinâmica do plantation nos espaços sociais, originando novas línguas, musicas leis e religiões. O termo crioulo denominava os nascidos na América, e estas novas “formas de vida” nascidas nas colônias eram parcialmente conscientes de que pertenciam a uma nova síntese ou mistura resultante de lutas internas, podendo assim a “crioulização” qualificar também a escravidão.
No âmbito social, mais especificamente no Brasil do século XIX, o escravo via-se segregado, uma vez que os ritos religiosos tronaram-se a única maneira de identificação na sociedade que ignorava sua individualidade. A existência de irmandades negras afirma o fato de que negros e braços não participavam juntos das mesmas atividades religiosas. No entanto, havia tolerância dos ritos africanos. Os ritos fúnebres são os melhores exemplos da tolerância da igreja católica com as crenças africanas, conferindo ao Brasil uma ressignificação para a morte que se localiza exatamente no medo do além vida, que exigia a presença do padre. Outro exemplo é a necessidade de uma boa morte, representada pelos batuques de lundum e Aves Marias, e as vestimentas coloridas e alegres das bandas negras nos cortejos fúnebres. Assim, a fusão entre a herança dos costumes europeus e os costumes africanos causava nos turistas a idéia de desrespeito, mas refletia nos escravos o conforto por serem a síntese do que restou de sua identidade africana, conferindo a sociabilidade que não os era proibida ou castigada, e sim tolerada.
Quanto à questão da comparação entre escravidão antiga e moderna, são notáveis tanto pontos de semelhança quanto de diferença entre elas. Embora ambas possuam em comum a hierarquização social, esta se dá de maneira distinta. Na escravização dos negros africanos, o que houve foi o uso da violência para a aquisição destes, de maneira forçada e tendo como única justificativa a superioridade em técnicas militares que a facilitou. A função dos escravos africanos, principalmente no caso do Brasil, era trabalhar exaustivamente para garantir os lucros de seus senhores, mesmo que em funções distintas. Já no caso da Grécia antiga, por exemplo, eram escravizados aqueles que faziam parte de sociedades conquistadas pelos gregos, e estes enxergavam esta submissão quase como um fator natural, visto que os não gregos, considerados bárbaros, teriam uma propensão natural à escravidão, já que não agiam racionalmente como aqueles. Desta forma, o escravo nada mais era do que um objeto, quase mecânico, que realizava vários tipos de trabalho e sequer era notado pelos cidadãos. A partir da distinção entre os dois tipos de escravidão, como destaca Blackburn, o ponto de distinção mais marcante é o funcionamento de caráter essencialmente econômico da escravidão moderna, visando os lucros e o progresso do sistema capitalista, o que não existia nas sociedades antigas.


BLACKBURN, Robin. Introdução: escravidão e modernidade. In: ____. A construção do escravismo no novo mundo. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 13-44.