sexta-feira, 18 de novembro de 2011

A superação da desigualdade pela diferença ou pela igualdade?

Ana Paula Daniel
Júlio Cézar Zandonaidi
Priscila Ventura Trucullo
Thiago Augusto de Freitas Machado
Thiago Henrique Alvarado

       O texto a ser analisado aborda a questão contemporânea sobre as discussões acerca da “diferença” e as inúmeras ciladas que o trato com o conceito e sua formação histórica podem trazer para a esquerda militante, que intenta alcançar uma diminuição da desigualdade através da busca pela igualdade baseada no “direito à diferença”. O autor enfatiza, principalmente, três tipos de cilada, a cilada semântica, a cilada cultural e a cilada da teoria e prática. O artigo toma como ponto de partida uma pesquisa de campo desenvolvida pelo autor, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci, que durante anos de 1986/1987 aplicou questionários entre a população de classe média paulista. Contudo, a pesquisa não se restringiu ao período em questão, antes, traçou comparações com a sociedade inglesa dos anos 1940, que Pierucci generaliza sob o signo de conservadores, apesar de ele próprio apontar que a pesquisa de Hans J. Eysenk, baseou-se em questionários aplicados à 250 conservadores, 250 liberais e 250 socialistas. A partir das observações entre as duas pesquisas, ele pode perceber muitas semelhanças e permanências entre as duas sociedades, no que tange à mentalidade conservadora dos entrevistados. Apesar de basear-se no critério político para seus procedimentos de pesquisa, seu argumento pautar-se-á  em critérios de sociabilidade e cultura para a explicação do fenômeno.
A origem do discurso da afirmação da diferença está nos grupos políticos de direita, mas especificamente da ultra-direita do final do século XVIII, tendo portanto, raízes na reação da direita por ocasião da Revolução Francesa, o que gerou a chamada Restauração, que utilizou-se do discurso das tradições, para defender costumes historicamente construídos e legitimados como naturais. Como exemplo, a hierarquização da sociedade, que baseava-se no princípio de que todos os seres humanos nascem diferentes, que tem determinadas funções na sociedade, que a desigualdade social era algo natural, pois baseava-se na natureza humana da diferença. Tal discurso da natureza da diferença, nós podemos encontrar em fins do século XIX e começo do XX, que pautavam-se no “dado biológico” para justificar a legitimidade do racismo, que tratava a diferença preconceituosamente, respaldado pelo valor “cientifico”. Segundo o autor, a nova esquerda, abandonou o discurso da igualdade, aquele característico da Revolução Francesa, e apropriou-se do discurso da diferença, tentando dar à ela novas significações, afim de trilhar o caminho para a igualdade, pois como frisa, Joan Scott, a verdadeira igualdade reside na diferença, dessa forma, a esquerda vem empunhando a bandeira do “direito à diferença”.
        Tal constatação nos leva a refletir sobre uma das ciladas presente neste discurso, privilegiadamente acadêmico e portanto, elitista, que é a questão da cultura da direita presente em todos os ramos da sociedade, como foi observado em sua pesquisa, historicamente construídas e fortemente arraigadas no imaginário da população. O autor constata que existe certa circulação de concepções da direita em determinados contextos específicos, entretanto não só em relação à concepções políticas, mas  também, e principalmente, seus valores apropriados para os espaços de sociabilidade, mesmo que espaços distantes entre si. Logo, percebemos, que a restauração da direita esteve muito mais ligada à uma restauração social do que política, desse modo ela conseguiu interpenetrar toda sociedade (sejam eles de direita ou de esquerda) através da cultura, enraizando toda uma gama de valores direitistas que acabam, através da retorsão do discurso da esquerda, por reafirmar a diferença em seu sentido destrutivo e negativo, fazendo com que a sociedade associe diferença à desigualdade, sendo um ponto muito forte na justificativa do preconceito por parte da nova direita. 
         Neste ponto, torna-se necessário apontar para a apropriação do discurso da diferença da esquerda pela direita, já que aquele discurso racista baseado no fator biológico tornou-se algo ultrapassado e superado. A direita, baseada nas ciladas semânticas do discurso da esquerda, criou o que o autor chama de neo-racismo, respaldado no “dado cultural”, apresentado como irredutível e servindo à fins segregacionistas e preconceituosos, argumentando o direito à diferença, como direito à distância de certos grupos, como direito ao preconceito, como direito de defender toda sorte de idéias, mesmo que racistas e preconceituosas etc. Segundo Pieirruci, há uma ambivalência nos discursos atuais da esquerda, no que diz respeito à diferença.  Isso implica uma questão muito importante que é a transformação do discurso da diferença, enquanto algo afirmativo para se alcançar a igualdade, em rejeição da diferença, pois o autor constata, que antes do racismo (rejeição fóbica da diferença) vem a obsessão com a diferença que podemos identificar atualmente nos movimentos sociais, que, hoje, se proliferam sob o signo da esquerda, um dos maiores espaços de discussão deste ponto, é justamente, o meio acadêmico. A cilada está justamente nos termos diferença/desigualdade, que não são correlatos, e sim apropriados nesse sentido, ou seja, é muito difícil afirmar a igualdade nas diferenças dentro de uma sociedade culturalmente conservadora, que assimila a diferença como sinônimo de desigualdade, isso quer dizer que fica muito mais complicado se livrar dos valores da hierarquização; dificílimo defender uma base igualitária que privilegie o direito à diferença, mesmo que seja possível em bases teóricas,  isto é, a dificuldade de aliar teoria e prática é mais uma cilada.
        Tal constatação leva-nos a enxergar a dificuldade de se levar o discurso teórico acadêmico para a prática efetiva, ou seja, transformar-lo em senso comum capaz de ser assimilado no cotidiano das pessoas simples, o que nos leva a mais uma cilada que é a necessidade da intelectualização para o melhor entendimento deste jogo semântico contraditório, caindo novamente nas amarras da elitização. Exemplificando tal dificuldade, o autor apresenta-nos o caso Sears, onde a EEOC acusou a empresa Sears de não dar condições iguais quanto a oportunidade de empregos para homens e mulheres no cargo de vendedor comissionado. O caso apresenta características típicas das contradições no discurso do neo-feminismo. Tal linha de pesquisa baseia-se no fato de que as mulheres foram historicamente excluídas dos postos de trabalhos masculinos, gerando a desigualdade entre os gêneros, ressalva, porém, que existe diferença de interesses entre homens e mulheres. O binômio igualdade/diferença quando tratado como antítese pela parte da defesa acabou gerando contradições no discurso da parte acusadora, a historiadora Kessler-Harris, tal falha foi aproveitada pela defesa representada pela historiadora Rosenberg.
          Para Perucci, o teorismo pós-moderno focado nas diferenças dicotomicas entre os grupos forma ilhas sociais, onde a mistura torna-se um elemento perturbador. Isso contudo carrega em si uma postura de que cabe aos próprios grupos a tarefa de desenvolver-se social/economica e politicamente. Desconsidera-se todo o processo histórico necessário para a formação das realidades. Desloca-se o entendimento da realidade para um determinismo de caracteristicas físicas, psiquicas, culturais, sociais, desvinculando isso das questões políticas e econômicas. Isso desvirtuaria portanto o próprio entendimento de formação da realidade clássicos advindo da esquerda, uma vez que colaboraria para o cartesianismo tipícos do método científico moderno defendido pela direita.
         Portanto, o autor, enquanto militante da esquerda, acaba por reconhecer que apesar do discurso da diferença ser academicamente possível e ter plausibilidade na realidade, por ser contraditório é na prática inviável, pois seria necessário desconstruir o discurso binário da igualdade/diferença, o que é muito complexo, pois o problema é justamente transpor a discussão acadêmica para o cotidiano . Dessa forma, ele aponta uma volta ao discurso da igualdade, volta por que é exatamente este discurso que a direita sempre temeu, logo, pode ser o único caminho possível para empreender lutas efetivas e conseguir obter a adesão da sociedade em tal empreitada pelos direitos à igualdade de fato, não excluindo as diferenças, mas sim, superando as desigualdades. 

Texto: PIERUCCI, Flávio Antonio. Ciladas da diferença. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(2): 7-33, 2 sem. 1990. 

Respeitar diferenças ou defender a igualdade? O discurso paradoxal

Ariane Pereira Lima
Caio Brandão
Mariana Rezende de Campos
Matheus Wilson de Oliveira Rodrigues
Rosa Aparecida do Couto Silva

Através de uma pesquisa realizada entre 1986 e 1987 pelos bairros de classe média baixa em São Paulo, o sociólogo Antônio Flávio Pierucci constatou que havia uma similaridade entre as respostas obtidas em sua investigação com a pesquisa amostral realizada por Hans J. Eysenck, intitulada “Social Attitude and Social Class”, a qual retrata a figura do conservador inglês na segunda metade da década de 40. Segundo o autor, há no Brasil o mesmo pensamento conservador de direita constatado no artigo de Eysenck meio século antes. Estes pensamentos de cunho conservador ocorrem ainda no país porque, segundo o autor, estão para além do campo de análise do político, estão no “metapolítico”, ou seja, nas relações sociais quotidianas e na luta cultural.
O artigo estudado se pauta, portanto, na discussão sobre a valorização das diferenças entre os indivíduos, o que teria sido uma bandeira primeiramente levantada pela direita, no final do século XVIII e início do XIX como reação à Revolução Francesa, que defendia a igualdade entre os homens. Mas o que Pierucci constata é que, atualmente, esta bandeira do incentivo à valorização das diferenças tem sido levantada pela esquerda com os “novos” movimentos sociais.
O objetivo de Antônio Flávio Pierucci nesta discussão é mostrar como essa apropriação da defesa das diferenças feita pela esquerda acabou causando um efeito de “retorsão”, ou seja, de fortalecimento do argumento que a direita sustenta desde o princípio, que é firmado na demarcação das diferenças. O autor defende que o racismo e o chauvinismo são caracterizados por rejeições à diferença, sendo que estas rejeições só podem ser colocadas após a afirmação da diferença, papel este que, com esta retorsão, passou a ser feito inconscientemente pela esquerda.
Essa apropriação do discurso das diferenças feita pela esquerda, com vistas à valorização das diversidades torna-se paralelo ao discurso da direita, enquanto deveria exatamente fazer o contrário, ou seja, deveria confrontá-lo, e é isso o que Pierucci chama de “ciladas da diferença”. Em seus argumentos ele coloca que, sendo este discurso historicamente da direita, a única maneira de afrontar o discurso conservador seria se manifestar na defesa e valorização da igualdade, e não da diferença. Ou como ele diz, o discurso que não é palatável à direita é o dos direitos humanos.
O sociólogo defende que esta tomada de posição pela esquerda não é totalmente paradoxal quanto pode parecer à primeira vista, pois a diferença não representa, necessariamente, desigualdade. “Somos diferentes, mas iguais, a verdadeira igualdade repousa nas diferenças, defender a diferença não quer dizer defender a hierarquia ou a desigualdade”. Contudo, há uma dificuldade em traduzir estes conceitos à sociedade, pois eles são produzidos e compreendidos academicamente e com teor um tanto quanto complexo, que se torna de difícil absorção para a maioria da população. Como estas questões se desenvolvem e se afirmam no âmbito do cotidiano, elas devem, então, ser trabalhadas e refletidas neste contexto, e não devem ficar restritas somente ao âmbito acadêmico.
A questão crucial que se afirma e que mina a possibilidade da apreensão deste conceito, é que delinear as diferenças torna-se complicado sem que se haja auxílio ao desenvolvimento de práticas discriminatórias. Para o autor, defender as diferenças sobre uma base igualitária é algo dificílimo na prática, mas seria o ideal. Sendo assim, Pierucci acredita que o único meio de criar-se um discurso capaz de confrontar o conservadorismo é ancorando-se no ideal de igualdade, de modo que haja uma compreensão generalizada que vise à prática cotidiana. Contrariamente ao que pensa o autor, porém, a historiadora Joan Scott acredita que o discurso da diferença na igualdade é válido somente na medida em que se consegue superar esta visão binária entre diferença e igualdade. Contudo, o que se mostra contemporaneamente, é que os discursos como o de Scott correm o risco de fazer com que o “feitiço se volte contra o feiticeiro”.

Texto: PIERUCCI, Flávio Antonio. Ciladas da diferença. Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 2(2): 7-33, 2 sem. 1990. 

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

BRASILEIROS NA ILHA DA DEMOCRACIA RACIAL

Daiana Beigo Farias
Kéllyta da Silva Veiga
Lucas Braghetta Caceres
Nicia Flávia Narciso

Globalização, de acordo com Schwarcz, dita uma unidade cultural em sentido amplo do termo, em meio à uma explosão de diferenças culturais, sociais, religiosas e políticas que se apresentam em todo o mundo.
Essa diversidade, ao longo da história da humanidade gerou conflitos entre os povos, fator que deu origem ao termo e sentido literal da palavra preconceito.
Para pautar essa tese, no artigo Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil, a autora dita sobre as diferenças raciais, termo que ganhou um sinônimo eufemístico conhecido por etnia, discutida entre sociólogos e antropólogos e outros estudiosos da área de humanidades da atualidade a partir de finais do século XVIII.
Schwarcz se utiliza da história nesse artigo, para nos informar a retórica do termo preconceito racial presente entre os homens em diversas sociedades, em diversos períodos históricos que vão da Roma antiga até a atualidade.
É importante ressaltar que as diferenças sociais e os conflitos gerados pela diversidade entre os homens é fator antigo e também atual, ou seja, é um paradoxo ao avesso, pois o antigo e o moderno estão em consonância, alterando apenas o seu discurso em relação às diferenças gerais entre os homens.
Na Roma Antiga, todos os que não eram romanos e não tinham territórios delimitados, ou mesmo demarcados, eram tratados como bárbaros. Em sentido religioso, pela força da Igreja Católica na Idade Média e na atualidade, todos o que não são cristãos eram e são considerados pagãos que representa um modo de consenso de diferenças presente em todos os grupos religiosos, religiões enquanto instituição, tribos ou mesmo sociedade dita atualmente como civilizada, moderna e evoluída que se difere daquilo que é dito como padrão a cada grupo ou sociedade. Contudo esse consenso de diferenças gerou o sentido de preconceito que maculou o mundo com guerras e conflitos entre os homens.
No decorrer da história, houve vários estudiosos que contribuíram para a evolução dessas idéias com propostas de entendimentos das diferenças e respeito mútuo entre os homens. Na França de finais do século XVIII a proposta apresentada era a de unidade, igualdade e fraternidade. Termos muitos discutidos que deram origem a outros discursos sempre na tentativa de encontrar um eixo central que pudesse balancear as sensações de diferenças em meio à humanidade e, sobretudo a aceitação e entendimento entre os povos, fator desconsiderado entre a humanidade, historicamente, pois as teorias seguiram e as diferenças permaneceram através do preconceito em sentido atual.
Muitos pensadores propuseram a “formalização das diferenças”, pensaram na evolução da espécie, marco histórico, representado por Darwin com a Teoria da Evolução da Espécie. Com a teoria determinista, as diferenças foram ainda mais ressaltadas na história da humanidade, sobretudo no século XV e XVI em que o Velho Mundo descobria o Novo Mundo.
Para exemplificar o sentido de preconceito, Schwarcz se utiliza da Descoberta da América pelos Europeus para denotar as diferenças e a idéia do termo “civilização” defendido pelos descobridores da América que chocaram com o modo de vida dos chamados primitivos, termo resultante do encontro entre os europeus e os povos americanos ditado como etnocentrismo por Todorov apud Schwarcz p, 79.
O encontro entre os civilizados e os não civilizados remeteu aos europeus o sentido de chegarem ao paraíso devido à abundância natural vista na América, sobretudo no Brasil. Também atribuiu aos povos nativos, o conceito se seres inferiores que perdurou durante todo o período colonial e republicano no Brasil.
Com a abolição da escravatura o problema das diferenças se acentuou ainda mais no Brasil, pois a mão de obra dos negros, considerados uma espécie inferior, inapta ao viver considerado civilizado, não servia aos moldes europeus. Logo precisavam de orientação em sentidos diversos.Estudiosos fizeram evoluir o sentido primitivo entre os homens, tanto que os antropólogos especificam os homens por estágios, o primeiro como estado de selvageria, o segundo em estado de barbárie e o terceiro como civilizado. Assim origina o conceito e “sociedade”.
É importante ressaltar que a questão de inferioridade dos homens americanos foi justificada no Brasil através da mestiçagem que deteriorava uma chamada “raça pura”
que poderia se degenerar com o cruzamento de raças. Entretanto o mundo propunha um “tipo ideal”. A mestiçagem passa a ser vista no Brasil, primeiramente, como um fator de degeneração, mas com a busca por uma convenção da identidade nacional há uma valorização da mestiçagem através de várias teorias, uma delas a das “três raças” que elegia o branco, o negro e o indígena como integrantes dessa amálgama que resultaria no brasileiro, porém o branco era colocado como representante da raça ligada ao civilizado, portanto, o projeto nacional oficial segue esta vertente e busca o branqueamento do brasileiro ao longo de gerações. É neste contexto e neste imaginário que verificamos o incentivo a imigração européia de áreas que os habitantes eram em sua maioria com a cor da pele branca.
Diante de tais constatações e observações de alguns aspectos da história da humanidade podemos, dedutivamente, afirmar que as diferenças e o preconceito estão presentes entre os homens, pois, mesmo que sociólogos, políticos, antropólogos, cientistas, historiadores e outros intelectuais que estudam os acontecimentos históricos da humanidade, ditam uma dada igualdade, há um sentido velado de preconceito em meio ao mundo global e diverso que se apresenta através da intolerância religiosa, política, social e cultural em destaque mundial.
 No caso de Schwarcz seu enfoque é o Brasil e tentar compreender a dinâmica do pensamento e das teorias criadas e difundidas desde o século XVIII e que estão imbuídas de um racismo frente a questão da mestiçagem no Brasil, um preconceito justificado em cada momento e contexto por um fator distinto, como por exemplo retomar o campo biológico das raças para defender uma degeneração que estaria presente na mistura de raças. Defende que o racismo não se findou no Brasil e que pensar na constituição e identidade nacional brasileira a partir de um vínculo com a teoria das três raças pode ser entendido como uma forma de “preconceito de ter preconceito”, pois retomar a identidade nacional a partir de teoria de raça é demonstrar como a diferença de raças ainda está presente em nosso imaginário e ignorar esta presença apenas contribui para encobrir essas permanências na sociedade brasileira.

“Limitar a questão racial a um problema exclusivamente econômico pouco resolve. Afirmar que a raça se esconde na classe é entender só parte da questão. Talvez seja mais produtivo enfrentar o mito, o “mito da democracia racial”, e entender porque ele continua a repercutir e a ser resignificado entre nós” (Schwarcz, 1996, p. 101)

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das teorias raciais em finais do século XIX. Afro-Ásia, 18, 1996.

A questão da mestiçagem e as Teorias Raciais: um debate sobre o Racismo no Brasil.

Camila Savegnago Martins
Laísa Gonçalves Aldeu de Almeida
Mariane Yume Franzin Nishi
Sarah Fortino Lasmar

No artigo em questão, Lilia K. Moritz Schwarcz nos mostra como a mestiçagem foi encarada nos diferentes períodos políticos do Brasil - Império, Primeira República e primeira metade do século XX -, demonstrando que o discurso fora pautado por teorias raciais que estavam em voga no mundo ocidental.
 Para explicar como o debate da questão racial foi se formando internamente, a autora desenvolve um panorama que vai desde a descoberta do Novo Mundo e o embate entre culturas que se deu a partir de então, mostrando mais uma vez que aquilo que não estava dentro dos padrões europeus era encarado como inferior, uma vez que, quando enfatizava a bestialidade do outro, o europeu se auto-afirmava.
Inicialmente, com a independência do Brasil, a incipiente Monarquia procurou formas e elementos que pudessem servir de características sob as quais a nova nação estaria fundamentada. Sendo assim, o tema racial girava em torno de um projeto nativista romântico, tendo o índio como o principal expoente da identidade nacional. Partindo deste ponto, a miscigenação entre os brancos portugueses e o nativo brasileiro foi tomada como uma espécie  de particularidade do Brasil; um ponto explicitado na obra produzida por von Martius para o concurso realizado pelo IHGB -“Como escrever a História do Brasil” – em que o português era tido como o “rio” principal ao qual os afluentes, como o índio, iam sendo absorvidos.
Schwarcz aponta que os intelectuais brasileiros fomentaram um enquadramento das idéias debatidas na Europa sobre questões raciais para a realidade brasileira. A Europa, sob o neo-colonialismo, com seus avanços técnicos e pautadas no progresso, tinham o seu modo de civilização como modelo ideal. A partir do surgimento de teorias como a de Darwin, a noção de evolução e a classificação dos homens, principalmente a partir do novo conceito de raça, em primitivos e desenvolvidos passa a ser recorrente. As raças seriam algo fixo e o entrecruzamento entre elas era considerado degenerativo; baseando-se nisso teóricos chamados “darwinistas sociais” condenam efetivamente a miscigenação.
Em meio à abolição e à proclamação da República, os teóricos brasileiros, principalmente por meio de instituições como as faculdades de Medicina e de Direito, de instituições histórico-geográficas, Museus passam a se respaldar nessas teorias, portanto, a partir do final do século XIX, novas idéias relacionadas à miscigenação passam a apresentá-la como algo prejudicial ao futuro da nação e que concretamente deveria ser combatida.
Em contrapartida, nas primeiras décadas do século XX, Gilberto Freyre aponta como um grande nome no cenário acadêmico e intelectual e, em sua obra, Casa Grande & Senzala (1930), nos mostra a mestiçagem como um fator de grande representatividade nacional através do “mito da democracia racial”. Freyre destaca positivamente a sociedade senhorial e a miscigenação nela imbuída, evidenciando assim, que a questão racial é fundamental para o nosso processo de formação e socialização e, dessa forma, arraiga-se na década de 30 a idéia positiva da mestiçagem.
A discussão da mestiçagem no Brasil é uma questão antiga e inacabada. É interessante salientar que ao longo dos anos, com a mudança de propostas políticas, a questão da mestiçagem foi deslocando-se e, nesse movimento as abordagens transferiram-se dos espaços acadêmicos para o cotidiano. Estamos inseridos em um ambiente onde a miscigenação é eleita como um dos pontos particulares da nação brasileira, porém, o que a autora argumenta quando trabalha com a questão do "racismo cordial", é o fato de que o preconceito acaba sendo velado,em outras palavras, a sociedade brasileira no discurso apresenta-se desligada de qualquer descriminação, porém subjetivamente o racismo ainda aparece.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Usos e abusos da mestiçagem e da raça no Brasil: uma história das teorias raciais em finais do século XIX. Afro-Ásia, 18, 1996.

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

"Hoje o Samba Saiu": do privado ao nacional

Josemar Pereira
Lucas Antônio da Rosa
Maikel do Carmo
Rodrigo Rufino
Thiago Peres

Este trabalho pretende demonstrar, a partir da visão de Letícia Vidor de Souza Reis, como o samba tivera em seu desenvolvimento a eminência da cultura popular em um primeiro momento, sendo posteriormente cooptado como símbolo nacional. Para tanto, cabe salientar que nesta manifestação cultural somam-se diversos aspectos, sejam eles sociais, políticos e econômicos. A compreensão quanto ao desenvolvimento desta expressão cultural enquanto centrada no processo de consolidação da República é o epicentro deste trabalho. Para tanto, faz-se necessária o entendimento acerca dos espaços de sociabilização e trocas culturais entre os diversos segmentos sociais, no qual o elemento negro toma caráter central. Entretanto, não é intenção deste trabalho discutir e problematizar o conceito de cultura, o qual para nós em linhas gerais se resume em um processo de ressignificação constante dos hábitos, práticas e manifestações cotidianas as quais correspondem também a uma “troca” destes elementos entre os diversos segmentos sociais. Em outras palavras, como Carlo Ginzburg define a ideia de circularidade “(...)um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo pra cima, bem como de cima pra baixo”(Ginzburg)
O desenvolvimento urbano no início de século XX caracterizou o que fora chamado por Nicolau Sevcenko de os dois Rios de Janeiro, um sob o prisma da Regeneração e outro do “labirinto das malocas” refletiam quase que instintivamente sob o contexto da época no âmbito das relações sociais. A presença do elemento negro, nos espaços urbanos, causava em parte da população certa indignação, visto que ambos os segmentos desfrutavam dos mesmos espaços urbanos de sociabilização e vivência, que a partir do contraste gerado de ordem racial, espacial ou econômica faziam-se sentir nas diversas manifestações de cunho oficial, tais como festividades cívicas e religiosas, e populares, festas, batuques entre outros. Elementos do contraste social que, aos poucos, ainda que (as elites, ou melhor, parte dela) se quisessem estabelecer uma dinâmica dos centros urbanos própria sem a presença indesejada fundamentalmente dos grupos de herança africana, o que passava a se constituir cada vez de forma mais incisiva era a presença destes setores. O fato é que o país passava a engendrar-se na modernidade e com esta houve diversas modificações na produção e assimilação de cultura no cenário urbano. Neste ínterim começaram a se delinear diversas manifestações culturais, de diferentes setores sociais que galgavam seu espaço caracterizando a eminência de alguns gêneros e expressões musicais que neste processo passaram a se deslocar dos espaços privados e inserir-se gradativamente ao âmbito nacional.
Neste sentido, como propõe Ana Maria Kiefer, em se tratando do projeto de nação que se pretendia construir, ainda no século XIX, em confronto com o que de forma concreta passava a se configurar como expressão musical tipicamente brasileira,

“Esqueceram-se de olhar para o próprio quintal onde espontaneamente, nas mãos das classes menos favorecidas, violões, flautas, clarinetas e demais instrumentos que estivessem disponíveis continuavam a misturar modinhas, lundus, chulas, valsas, polcas e a tecer a comédia musical urbana.” (Kieffer, 2007, p.210)

Instituía-se, portanto, mesmo entre confronto das culturas erudita, na qual se projetava a ideia de nação, e  popular, o qual de forma quase natural constituíra-se o referencial de cultura popular identificado já no século XX como símbolo nacional. Ainda neste projeto de nação, forjado por instituições como Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), cabe salientar a aparente ausência do elemento negro, nesta projeção, a qual não se configurou nas práticas cotidianas no espectro das relações sociais, em um tom quase comedioso. Portanto, compreende-se que o momento histórico vivido pela música popular brasileira de inícios do século XX era de indeterminação quanto à quantidade e profusão de ritmos e gêneros musicais os mais diversos, quer sejam nacionais ou internacionais, os quais disputavam a preferência do público ouvinte, mas que se faziam presentes no espaço social sem, no entanto, entrarem em oposição ou conflito uns em relação aos outros.
Desta feita, a autora nos alerta para não incorrermos no que ela denomina de anacronismo cultural, ao atribuirmos ao samba o símbolo de ícone representativo da nacionalidade brasileira por excelência, uma vez que, neste período, vários ritmos gozavam da simpatia e da apreciação do público.
Uma das grandes inovações do começo do século passado no Brasil se refere à introdução e difusão da gravação de discos, na qual a chamada Casa Édison, de matriz norte-americana, foi pioneira no ramo, se instalando no Rio de Janeiro por volta do ano de 1900. Desta feita, em 1916, tem-se a gravação de um samba de grande sucesso chamado “Pelo Telefone” que será um divisor de águas na música popular brasileira. O tema central do referido samba contribuiu para a grande repercussão do mesmo. A canção é uma espécie de sátira ao conluio entre um delegado da polícia e o jogo ilícito.
A autora dirá que é sintomático que a temática do primeiro samba a estourar nas paradas de sucesso seja justamente a revelação da cumplicidade entre a ordem e a desordem. Destarte, por este período há uma recorrente perseguição por parte da polícia aos lugares onde era tocado e cantado o samba. Entretanto, apesar da atuação policial ser marcada pela truculência, notamos uma “aproximação” de certo modo amistosa entre os sambistas e as autoridades policiais, haja vista ambos pertencerem, muitas vezes, às mesmas origens sociais.
Apesar disto, um depoimento do sambista Donga, no qual este relata um caso de uma brusca interrupção das, assim por ele chamadas, “festas íntimas”, deixa entrever como o espaço privado das classes populares era constantemente violado por ações arbitrárias da polícia.          
Pensando nestes espaços privados onde o samba era tocado e dançado, nos remetemos às casas das chamadas “tias” baianas, nas quais tinha lugar uma verdadeira interação entre camadas das elites, intelectuais ou governantes, e camadas populares, sendo frequentadas por grandes figuras da época. Nas palavras da autora:

“Desta maneira, na intimidade das casas das ‘tias’ baianas (sendo a mais afamada a da Ciata), os dois Rios de Janeiro (o ‘Rio da Regeneração’ e o ‘Rio das malocas’), separados no espaço, encontram-se num ambiente festivo, devocional ou não. Ali, mundos sociais distintos se interpenetram. Cidadãos pobres, como João da Baiana que, na qualidade de artista frequenta o palacete de Pinheiro Machado, adentram através de sua arte, e ainda que parcialmente, a privacidade do lar dos mais ricos (Sevcenko, 1998b: 544-45). Aí estabeleciam-se alianças e obtinham-se favores.” (pg 10).

As discussões em torno samba também envolveram questões acerca do seu “local de nascimento”. Dentro disso, baianos e cariocas geraram diversas querelas, cada um advogando para si a paternidade deste filho que foi ganhando influência com a evolução dos acontecimentos. As primeiras disputas aconteceram ainda na segunda década do século passado, sendo que o time dos cariocas foi representado pela figura de Sinhô e os baianos tiveram como paladinos Hilário Jovino Ferreira, Donga e João da Baiana. Esses debates ficaram mais acalorados quando os nomes supracitados resolveram utilizar o samba para criticar os seus adversários. A partir disso, várias marchinhas foram criadas para difamar a oposição, sendo que tantas outras surgiram com o escopo de replicar o que já havia sido exposto.
No que tange aos meios de propagação e difusão de sambas, artistas e músicos negros no início do século XX, tem importância fundamental os chamados “Teatros de Revista”. Esse meio de propagação em massa foi um dos maiores responsáveis pela popularização do teatro e música populares, uma vez que espetáculos teatrais detinham, além de um público bastante restrito as camadas mais abastadas da população, ainda sua execução e produção era hegemonizado por companhias teatrais estrangeiras, principalmente de origens francesa e italiana. Isso se devia ao fato que a elite brasileira ainda detinha no seu imaginário o padrão artístico da Europa Ocidental como referência no que tange a apreciação artística.
A maior divulgação da dramaturgia e música advindas das camadas subalternas da população gerou duas consequências principais: primeiro que a produção artística começou a dar ênfase em tipos sociais mais familiarizados com a realidade brasileira, principalmente os que surgiram após a recente urbanização do Rio de Janeiro, tais como a mulata, o capadócio (depois chamado malandro), o guarda, o funcionário público etc.; segundo que essa divulgação em massa popularizou, em outras camadas sociais, gêneros musicais vindos dos subúrbios cariocas como o samba, o maxixe e o lundu. Para se ter uma idéia dessa propagação da música popular nos decênios de 1910 e 1920 era lançada no período anterior ao carnaval uma considerável tiragem das chamadas “revistas carnavalescas”, que tinham o papel de auxiliar na difusão dos sambas a serem cantados e tocados no carnaval do ano em que a tiragem fora publicada.
Foi o teatro de revistas que lançou a primeira grande intérprete de sambas, Araci Cortes. A cantora, conhecida como a “Linda Flor”, demonstrava grande sensualidade com seu requebrado e sapateado, marcas da intérprete. Com isso, ela auxiliou na consolidação do tipo mulata dentro do samba brasileiro e, posteriormente, virou uma representação da brasilidade. Além disso, o tipo-mulata auxiliou a abordar outro tema muito comum nos centros urbanos: as relações afetivos sexuais interétnicas.
Com a concorrência do cinema e do rádio, o teatro de revistas foi perdendo força e mercado, sendo isso responsável pela perda de influência desse meio de difusão de informações.
No que se refere a grupos musicais que auxiliaram na propagação do samba, tanto no Brasil quanto no exterior, Os 8 Batutas - grupo formado em 1919 - tiveram grande importância como promotores da divulgação do samba. Sua simples composição, que contava com quatro negros, já foi motivo para que fossem realizadas várias contestações. Entretanto, o talento dos membros desse grupo lhe rendeu vários amigos, sendo que alguns deles pertenciam às classes mais abastadas da sociedade. Dessa forma, esses contatos puderam oferecer recursos financeiros à eles para que viagens pelo Brasil e pelo mundo pudessem ser feitas, como o intuito de divulgar a sua arte. Em uma dessas, os 8 Batutas foram parar em Paris, aumentando as altercações em território brasileiro acerca da questão de até que ponto eles poderiam ser considerados como representantes da música nacional. Como consequência houve um racha na opinião brasileira: alguns aceitavam que os 8 Batutas como representantes da música brasileira e outros não concordavam com isso.
O certo é que, com o passar do tempo, o samba foi ganhando cada vez mais e mais adeptos, talvez pela sua grande receptividade em vários círculos sociais, talvez pelas formas de protesto que eram inseridas nas canções. Com o fim da Primeira República e com a ascensão de Vargas, o samba será utilizado pelo governo para construir uma aproximação entre este e o povo. Assim, na esfera política-institucional houvera uma apropriação do samba, gênero musical tão comum entre as classes mais baixas, para mostrar sua proximidade e fidelidade para com a base da pirâmide social. Este gesto, somado a tantos outros, renderam ao governo do período a alcunha de “populista”.

Texto: REIS, L. V. de S. “O que o rei não viu”: música popular e nacionalidade no Rio de Janeiro da Primeira República. Estudos Afro-Asiáticos, 2003,vol. 25, nº2, pg 237-279.

Referências bibliográficas

GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.

KIEFFER, A. M. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus, Editora da Universidade de São Paulo, 1965. Vol. 1.

sábado, 5 de novembro de 2011

Da exaltação à repressão, do elogio ao repúdio: a ambivalência do samba carioca como elemento de identidade nacional na Primeira República

Amanda Cristina Stefan
Bárbara Mariani Polez
Jéssica Nunes
Nívea Lins Santos
Tadeu Medeiros

O texto de Letícia Vidor de Sousa Reis faz uma análise sobre o processo de legitimação do samba carioca, enquanto cultura produzida pelos negros, e como esta linguagem vai se firmando enquanto elemento de cultura nacional, enfocando nas três primeiras décadas do século XX.
            Para a autora, o samba vai aos poucos conquistando seu espaço de aceitação, embora este gênero musical tenha sofrido uma constante oscilação entre sua aceitação e repúdio. É válido ressaltar que, durante o período analisado, o país tinha acabado de sair de um regime de escravidão no qual não havia espaço para aceitação da figura do elemento negro na sociedade. Com a ampliação da cidadania para aqueles que, tempo atrás eram vistos apenas como mercadorias, aumentou a tensão racial entre negros e brancos. Aceitar o negro e sua cultura significaria aceitar seu papel como agente político. Isso se dava em um momento no qual os critérios darwinistas eram um empecilho à incorporação do negro na esfera política.
            Contudo, como a autora salienta, o processo de reconhecimento da cultura negra - especificamente do samba, analisado no artigo - oscilou entre a aceitação e o repúdio, e este movimento de oscilação nos é bem representado no caso de João Batista de Lacerda. O diretor do Museu Nacional, adepto do darwinismo social e árduo defensor das teses de branqueamento da população brasileira na esfera pública, era freqüentador de redutos de cultura negra, como as festas nas casas das tias baianas, redutos de samba carioca e espaço de manifestação de sua cultura. O exemplo de João Batista é simbólico, pois representa a dicotomia existente em relação às manifestações de matriz negra, que oscilou entre a exaltação e a negação da cultura afro-brasileira neste período. Se por um lado, na esfera pública havia o repúdio - e por vezes repressão, na esfera particular havia aceitação e participação.  
            Neste sentido, notamos que no âmbito das relações pessoais, não havia uma posição tão maniqueísta entre: aceitação/não aceitação. Havia um espaço de sociabilidade que permitia uma circularidade cultural, entre o popular e o erudito. Entre o “Rio da Regeneração” e o “Rio das Malocas” houve a intersecção dos mundos, mas isso não excluiu os latentes conflitos sociais.
             Interessante notar que o samba, apesar do ritmo ser o mesmo, possuía significações das mais diversas. Um samba poderia servir para inúmeras funções, como satirizar as autoridades, ridicularizar a hierarquia social, trazer à tona um debate pessoal, além de expressar relações afetivas em sua intimidade. Sambas com este teor eram apresentados nos teatros de revistas, pois estes eram poderosos meios de divulgação do samba carioca, artistas e músicos negros nas décadas de 1910 e 1920. Sendo assim, os teatros de revistas serviam tanto para a divulgação da música quanto da dramaturgia populares que muito tinham como temáticas sátiras e alusões a fatos políticos e sociais.
            Esse samba polissêmico no início do século XX foi sendo ampliado por meio dos recursos audiovisuais que a nascente cultura de massas ia aos poucos implementando. O avanço das características modernas abriu portas para que os músicos tivessem a possibilidade de acender socialmente. Porém, essa inserção das classes populares na era moderna foi acompanhada de censuras, constrangimentos e restrições; por isso que as letras de muitos sambas eram revisadas, a exemplo da música Pelo Telefone.
Essa música possui uma autoria controvertida; o que cabe aqui ressaltar que isso aconteceu com diversos sambas. Isso porque a incipiente e promissora indústria fonográfica introduziu significativas mudanças também nesse sentido; ou seja, antes a criação era mais coletiva e improvisada nas rodas de partido alto, agora, com a modernidade se desenvolvendo entre as décadas de 1920 e 1930, as composições de autoria individual ganharam mais força.
A introdução do samba na indústria fonográfica promoveu mudanças nas relações sociais, rivalidades foram afloradas em razão do novo significado que o ritmo ganhou, acarretando, por exemplo, em polêmicas acerca da autoria das letras e em diversas acusações de plágios. Outro exemplo disso é a discussão, também inserida pela autora, em relação à disputa freqüente entre o Rio de Janeiro e a Bahia em torno da autenticidade do samba. Houve variadas formas de provocações e “brigas musicais” para se determinar uma espécie de “pureza” do samba e de que lugar este teria se originado. É evidente que houve intensa migração baiana para a capital federal na virada do século, logo, a confluência de culturas baiana e carioca se deu de modo muito freqüente; no entanto, como bem lembrou Letícia Reis, a discussão não deve ser orientada para saber a origem do samba, uma vez que as tradições servem aos grupos sociais nelas envolvidas como argumento político. Ao que tudo indica é mais interessante compreender que a linguagem do samba serve mais para expressar diferenças regionais, desavenças pessoais e/ou insatisfações populares com o poder vigente.
Ao lado do samba a idéia de mulata foi sendo construída também nesse período para dentro e para fora do país; ela protagonizou o tema da suposta harmoniosa mestiçagem brasileira. Em diversos sambas a imagem da mulata brasileira foi sendo criada e reafirmada, a fim de que funcionasse como uma categoria explicativa para um povo mestiço, que é vivenciada no nível das relações interpessoais do cotidiano.
Letícia Reis buscou, portanto, demonstrar que o samba carioca passou por um processo de legitimação, conquistando gradualmente os âmbitos da sociedade brasileira, ao longo das três primeiras décadas do século XX.  A autora chama atenção para a indefinição musical pela qual a música popular brasileira passou entre os anos 1910 e 1920, em razão da existência e da mistura de diversos ritmos, nacionais e internacionais, não podendo neste período, ser atribuído a ele o sentido de elemento representativo da brasilidade.
A oscilação entre a exaltação e o repúdio do samba carioca ao longo das primeiras décadas do século XX, está diretamente ligada à imagem, também ambivalente, do negro na sociedade. Se por um lado era valorizado em razão de sua herança cultural, por outro, os teorias raciais de origem europeia o impediam de ser incorporado à nova cena política. Apenas a partir dos anos 30, com a mudança do paradigma - do evolucionismo social para o culturalismo - quando a miscigenação deixou de ser fator de degeneração e passou a representar a singularidade da nação brasileira, elementos da cultura popular que já possuíam certa aceitação na sociedade brasileira deste período - como o samba - passaram a ser valorizados e elevados à categoria de símbolos nacionais. Essa mudança correspondeu ainda, a uma opção política do governo Vargas, em incorporar a herança negra à esfera pública, promovendo e exportando a ideia de que, na “aquarela brasileira”, havia uma “harmonia racial”. Por fim, é importante ressaltar que a valorização da cultura popular e, no caso do samba carioca, de sua consolidação como representante da brasilidade, foi um processo de “duplo reconhecimento”. Assim como segmentos intelectuais e artísticos da sociedade brasileira as valorizaram, artistas e intelectuais estrangeiros, principalmente aqueles ligados ao movimento modernista, também apreciavam as manifestações populares brasileiras, em especial as de matriz negra. O processo de “duplo reconhecimento”, juntamente ao contexto político da Primeira República, contribuiu, portanto, para a difusão e legitimação do samba carioca como representante da brasilidade.

REIS, Letícia Vidor de Sousa. "O que o rei não viu": música popular e nacionalidade no Rio de Janeiro da Primeira República. Estudos Afro-Asiáticos; volume 25, número 2, 2003, p. 237-279.