sexta-feira, 24 de agosto de 2012

Relações de poder: o conceito de escravidão em uma análise histórica da questão

Jéssica Abud de Souza
Larissa Forner
Vinicius Fattori
Paulo Scurato


Nas páginas introdutórias de seu livro Escravidão e Morte Social, o pesquisador Orlando Patterson procurou expor uma definição preliminar acerca da escravidão. Para isso, o autor recorreu a autores como Weber e Marx, o que motiva comentários iniciais quanto às ideias de Weber sobre o poder e suas relações. Grosso modo, podemos classificar o poder enquanto expressão da Tradição, do Carisma e/ou da Burocracia, cujas naturezas são, respectivamente, o respaldo patriarcal e político, assim como a autoridade instituída. A escravidão é uma forma de relação humana que, por sua vez, se estrutura e se define pelo poder envolvido nesta interação entre senhores e escravos. Ela é, sobretudo, uma relação de dominação, como salienta Marx.
Patterson arrolou três facetas ao conceituar as relações de poder: a social, a psicológica e a cultural da autoridade, sendo que cada uma delas possuía características singulares; fato este que não impede que as mesmas estejam inter-relacionadas. A primeira característica – e que se ligava à faceta social – diz respeito ao caráter incomum dessa relação, dada a intensidade de poder envolvido e as “qualidades da coerção” que a mantiveram e reproduziram: a força organizada e a autoridade, pelas quais o uso da violência bruta poderia ser reduzido, porém nunca desconsiderado. Isso porque a base da relação entre senhores e escravos era necessariamente a violência, elemento que tornava o cativo dependente de seu senhor e impotente quanto a outro indivíduo de sua mesma condição. 
A segunda característica – e que se ligava à faceta cultural da autoridade – provocou o desenraizamento do escravo. Sua condição sempre teria sido justificada como um meio de suspender temporariamente a morte, mas ela apenas o deixava como um ser socialmente morto (esfacelamento do sujeito), uma vez que a dependência integral ao proprietário o tornava uma não-pessoa à qual estava vedado qualquer direito e obrigação para com seus ascendentes e descendentes. Além do isolamento das relações culturais e da herança social, havia ainda a recusa formal em reconhecer os laços firmados entre os escravos, apesar de eles ocorrerem. O medo das separações forçadas era, então, constante e se tornou uma ameaça eficaz praticada pelo senhor, configurando-se também como uma forma de violência (força coercitiva) que transcendia qualquer tipo de castigo corporal. Segundo Patterson, a alienação de grupos e localidades foi outra forma de provocar o desenraizamento. Tal condição teria sido sustentada porque o senhor detinha o controle de instrumentos simbólicos suficientemente capazes de levar todos a acreditarem que era esse o único meio possível de se organizar a realidade social: os instrumentos físicos de controle e punição dos corpos tinham, portanto, tais simbolismos como correspondentes culturais.
A terceira característica – e que se ligava à faceta psicológica – tratou da honra. Só possuía honra quem tinha valor público a defender e ser defendido por outrem; e os escravos, como criaturas sem poder ou existência social independente, se tornavam pessoas desonradas frente a seus senhores. Outra consequência dessa situação é que a mesma teria levado os cativos à submissão consentida, e à culpabilização de si próprios – a ideia de que sua condição era merecida. Sendo, porém, uma relação dialética, envolvendo poder e impotência, era possível que ocorressem reinvenções e inversões da relação de poder, tornando assim os senhores totalmente dependentes de seus escravos, sendo possível até mesmo que estes viessem a desonrá-los através, por exemplo, de condutas públicas consideradas indevidas. Estas são formas de resistência e retomada de “poder”, mesmo que tal quadro viesse a ser contornado pelos sempre ativos instrumentos culturais dominados pelo senhor, que reafirmavam a realidade que se pretendia negar.
A objeção que fica é justamente quanto à tentativa homogeneizadora de Orlando Patterson em conceituar a escravidão ao longo dos séculos, buscando seu “sentido geral em todos os tempos” e dando menor relevo às condições históricas específicas de cada período concebendo-a enquanto "dominação permanente e violenta de pessoas desenraizadas e geralmente desonradas”.

Os Elementos Constituintes da Escravidão


André Luis Gobi
Diego dos Reis Terlone de Oliveira
Renan Falcheti Peixoto
Vinicius Carlos da Silva
Vivian Montezano Cruz



Orlando Patterson, na obra Escravidão e Morte Social: Um Estudo Comparativo, e em especial no capitulo introdutório “Os Elementos Constituintes da Escravidão”, coloca-nos que as relações humanas são perpassadas pelas relações de poder, relações estas que se configuram como relação de dominação já que o poder de uma pessoa ou grupo sobrepõe-se ao poder de outros. Assim, a escravidão configurou-se como a mais extrema relação de dominação em que se teve o poder total do senhor relacionado diretamente à impotência total do escravo.
Para Patterson, a relação de dominação da escravidão tem três conjuntos de características: a violência, o desenraizamento, e a perda da honra, que incidem sobre o escravo e que são os elementos constituintes da relação escravista. Pelo aspecto da violência, tem-se que a escravidão como relação de dominação tem sua origem e manutenção ligada à violência, pois, por ela são os novos escravos recrutados e também por ela, eram os já submetidos à escravidão mantidos nessa condição, seja pelo uso ou ameaça da violência. O escravo adquirido por um ato de violência torna-se impotente (sem poder) na medida em que a sua escravização ocorre por um mecanismo de troca que mantém sua existência física (a pessoa poderia ter sido morta, mas não foi), o que implica em sua impotência para manter sua existência física, e que em contrapartida liga sua existência e socialização ao seu senhor de maneira que essa mesma existência passa a se concentrar em outra pessoa.
Na questão do desenraizamento, o escravo torna-se uma não-pessoa, já que está morta socialmente sem direitos a pertencer a qualquer ordem social, seja como negação de direitos ou obrigações para com seus antepassados e descendentes, que o isola das relações sociais e da herança social de seus antepassados. Não obstante essa negação e recusa formal de reconhecimento das relações sociais do escravo, esse por sua vez possuía relações sociais informais com laços sociais entre si fortes, como uniões sexuais regulares, filhos. A perda dos laços de nascimento, dos laços de sangue, ligação a grupos, a locais de origem, é a característica que dá à relação de escravidão o seu valor singular para o senhor na medida em que o escravo não podia reivindicar ou não poderia ter essa capacidade de reivindicação de seus laços de sangue, origem (aspectos do desenraizamento), sendo essa a condição que atesta a sua morte social, implicado na negação de sua humanidade.
O desenraizamento do escravo, sua morte social, é reforçado pelo controle que o senhor exerce sobre instrumentos simbólicos que conformam a suam autoridade e que persuadiam, não só os escravos, como também as demais pessoas de uma sociedade escravista de que o senhor era o único mediador entre a sua comunidade e a vida dos escravos. Caracterizavam-se esses instrumentos simbólicos (os rituais de escravização, nomeação, vestimenta, marcas corporais e penteado) como correspondentes culturais dos instrumentos físicos usados para controlar o corpo do escravo. São os açoites simbólicos.
Numa simbiose entre violência e o desenraizamento, chegamos à questão da perda da honra a que o escravo foi submetido no momento em que foi escravizado. Patterson se utiliza de uma formulação de Hobbes em “Leviatã”, na qual o filósofo coloca que honra e poder estão intrinsecamente relacionados, já que em geral se honra a quem tem poder (de maneira que esta pessoa dotada de poder pode prejudicá-lo ou ajudá-lo), e o ato de honrar, é dar valor a alguém, seguindo a obediência do escravo com o senhor uma lógica semelhante. Assim, o escravo não possuía honra em virtude da origem de sua condição a qual o destituía de qualquer poder e o privou de uma existência independente colocando o seu senhor como condicional para a sua existência. O escravo, portanto não possuía honra porque não tinha poder ou existência social independente, de maneira que a relação senhor-escravo gerava um forte apelo de honra para o senhor e inversamente de desonra para a condição escrava. Patterson coloca que em muitas sociedades escravistas, a posse do escravo não havia uma expectativa para o que esse poderia produzir, mas sim o papel de “excitador” da honra do senhor que essa posse proporcionava. Elenca-nos Patterson os elementos da escravidão. “Violência direta e insidiosa, invisibilidade e anonimato, violação pessoal infinita e desonra crônica e inalienável”.
Orlando Patterson coloca, por fim, que este seu estudo é uma análise indutiva, ou seja, estabelece proposições gerais com base no conhecimento de certo número de dados singulares, que busca, portanto elencar as dinâmicas invariáveis que perpassaram as sociedades escravistas dentre seus múltiplos aspectos.