domingo, 16 de setembro de 2012

A escravidão no advento da modernidade


Aline Ribeiro de Barros
Carla Alexandra Passalha
Cristiane Maria de Lima Curtolo
Rosangela Silva Rezende

Conforme aborda o historiador britânico Robin Blackburn, na sua obra “A construção do escravismo moderno no Novo Mundo”, o sistema escravista que se desenvolveu nas colônias da América se configurou de maneira inovadora, quando comparado às formas de escravidão anteriores, mesmo apresentando alguns aspectos de uma configuração tradicional. Nesse sentido, o autor busca analisar em sua obra a constituição dos sistemas europeus de escravidão implantados nas colônias americanas, assim como também objetiva melhor compreender a relação existente entre a escravidão e o advento da modernidade. 
Segundo Blackburn, a escravidão moderna foi majoritariamente fomentada e regulamentada pelos comerciantes de escravos e pelos colonos que faziam uso desse tipo de mão de obra, se opondo à ideia equivocada de atribuir ao estado as responsabilidades sobre tal comércio, ou seja, a sociedade civil colonial que estabelecerá as regras e costumes no que tange a escravidão e ao estado será atribuído o dever de dar legitimidade a tais regras e costumes, no sentido de respaldar legalmente o que já se foi convencionados pela sociedade civil.
Na busca de compreender a configuração do que intitula de escravismo moderno, Blackburn destaca o fato de o sistema escravista europeu aplicado às Américas ter adquirido um caráter intensamente comercial, o que fez com que o comércio atlântico se transformasse na mola propulsora das trocas globais entre os séculos XVI e XIX. Conforme enfatiza o autor, esse caráter extremamente comercial que a escravidão no Novo Mundo passa a ter é um aspecto que a diferencia da antiga: “Pode-se dizer que muitos escravos romanos foram vendidos por terem sido capturados, enquanto muitos escravos africanos que alimentaram o tráfico atlântico foram capturados para serem vendidos.” (BLACKBURN, 2003, p. 23).  Haja visto, o desenvolvimento notável do sistema de plantations no Novo Mundo, que de início baseou-se na mão de obra indígena, sendo esta rapidamente substituída por milhares de africanos que passaram a sustentar o sistema colonial desempenhando tanto funções braçais árduas quanto de supervisão.
Nesses aspectos, o autor considera que a escravidão nas Américas se deu de maneira bem menos diversificada se comparada a escravidão no Velho Mundo, em se tratando do tipo de atividade exercida e da sua composição étnica. No entanto, como o mesmo menciona a escravidão americana não só apresenta características inéditas, assim como é associada a vários processos que integram a modernidade, tais como:

(...) o crescimento da racionalidade instrumental, a formação do sentimento nacional e do estado-nação, as percepções da identidade baseada na raça, a disseminação das relações de mercado e do trabalho assalariado, o desenvolvimento das burocracias administrativas e do sistema moderno de impostos, a crescente sofisticação do comércio e das comunicações, o nascimento das sociedades de consumidores, a publicação de jornais e o início da publicidade impressa, a “ação à distância” e a sensibilidade individualista. (BLACKBURN, 2003, p. 16).  

Para Blackburn, o elo entre a modernidade e a escravidão enfatiza o lado obscuro do progresso, já que a escravidão moderna se configurou como destrutiva e desumana, pois “a dinâmica espantosa da sociedade civil também é impregnada de desastres e violência injustificada.” (BLACKBURN, 2003, p. 19).  
No que tange a América espanhola, segundo o autor, o estado colonial teria um papel mais amplo e controlador, o que veio a restringir o desenvolvimento da escravidão nas plantations, ao passo que no Brasil português, o estado se mostrava menos regulador, permitindo um desenvolvimento maior desse comércio. Este que seria ambicionado por outras nações europeias, tais como França, Holanda e Inglaterra.
Nesses moldes, a escravidão passa a constituir um rentável negócio, no entanto, mais que um negócio, se configurava como uma instituição, um sistema destrutivo e opressor, “mas que veio a exibir a rotina comum de uma empresa” (BLACKBURN, 2003, p. 23), que se embasou na coerção e na manutenção da ordem lançado mão de maus tratos frequentes que além de punições, tinham também um caráter disciplinar e pedagógico.   
O viés racial da escravidão do Novo Mundo ganha espaço na medida em que comerciantes e colonos passam a utilizar teorias raciais como explicação para a escravidão. Os cativos não eram considerados membros do Estado, por isso adquiriam a nacionalidade de seus proprietários. Dessa forma, para os europeus do início da era moderna, aqueles eram considerados selvagens que precisavam ser domesticados e ter sua identidade naturalizada, o que demonstra o intuito, ao menos em tese, civilizatório nessas ações.
Com base nesses pontos a serem trabalhados pelo autor, Blackburn afirma: “A conjunção de modernidade e escravidão é estranha e desafiadora, já que o elemento mais atraente da modernidade sempre foi a promessa de maior liberdade pessoal e auto-realização”. (BLACKBURN, 2003, p. 32).  Assim, segundo análises do autor, ao mesmo tempo em que a escravidão esta intimamente ligada a elementos da modernidade, essa forma de exploração de mão-de-obra, ocorrida e aprimorada no Novo Mundo, acaba por ocorrer concomitantemente às promessas de liberdade e igualdade em franca ascensão no período. Desta forma, a escravidão se torna integrante da modernidade, na medida em que será a força motriz da economia, que por sua vez, trouxe o desenvolvimento e o ‘progresso’ para o Ocidente europeu.
Desta maneira, pode-se concluir que a introdução do livro “A construção do escravismo no Novo Mundo: 1492-1848” suscita a questão de que a história da modernidade é construída com base em relações sociais desiguais, assim como enfatiza Orlando Petterson na sua obra “Escravismo e Morte Social: um estudo comparativo”:

A escravidão é uma das formas de relação de dominação mais extremas, tocando os limites de poder total, do ponto de vista do senhor, e de impotência total, do ponto de vista do escravo. No entanto, difere de outras formas extremas de dominação em aspectos muito específicos. (PATTERSON, 2008, p. 19).  

Nesse contexto em que a escravidão se adentra a modernidade novas formas de representação e expressão surgem no sentido de se apreender tal realidade. Nesse sentido, um novo estilo artístico, o barroco, buscará criar e propagar “uma visão controlada e santificada da sociedade civil” (BLACKBURN, 2003, p. 36). No entanto, o barroco surge como uma expressão oriunda da alta sociedade civil, sendo assim, tal estilo artístico acaba por ser aceito como uma cultura oficial, ao passo que, o crioullo, um outro tipo de representação da sociedade escravista, vem contrapor essa dita ‘cultura oficial’, e por ser expressão de classes populares, acaba por criar o que a grosso modo, pode ser chamado de cultura popular.
Segundo Blackburn, o barroco procurou dar uma visão harmônica da sociedade escravista, no entanto, aos poucos, elementos crioullos vão sendo a ele incorporados de tal maneira que no ponto de vista do autor, a versão colonial do barroco antecipará elementos do crioullo, que por sua vez, se afastará dos modelos europeus, adquirindo em geral um caráter sincrético e popular.
Mediante tais discussões, ao fim de seu capítulo introdutório, o autor enfatiza o fato de milhares de escravos africanos terem sustentado o desenvolvimento europeu, não só com o seu árduo suor, mas também com seu próprio sangue: “Mas era este o preço inevitável e ‘necessário’ do avanço econômico?” (BLACKBURN, 2003, p. 39).  Nessa perspectiva, o autor afirma que, se foi mesmo um preço necessário a ser pago, ao menos deveria parecer justo, no entanto, os danos humanos causados pela escravidão são, até hoje, sentidos pela sociedade.

Texto: BLACKBURN, Robin. Introdução: Escravismo e modernidade. In.: A construção do escravismo no Novo Mundo. Trad. Maria Beatriz de Medina. Rio de Janeiro: Record, 2003. p. 13-44.

7 comentários:

  1. Quando são mencionadas as diferenças da escravidão do Mundo Moderno e do Mundo Antigo, achei interessante traçar uma relação entre as rebeliões dos escravos nessas diferentes épocas, pois, embora existissem diferenças significativas em cada tipo de escravidão, também é possível enxergarmos pontos em comum. Tomo como referência o historiador K. Bradley que em seu livro Slavery in Africa, dedicou o primeiro capítulo a este trabalho. Em sua comparação ele caracterizou sete condições para as rebeliões em ambos locais, como: 1- as revoltas ocorriam onde a população escrava fosse maior do que as dos senhores, 2- existência de mais escravos da primeira geração, isto é, aqueles que não eram criados em cativeiros, 3- os escravos tinham a origem étnica comum, 4- havia condição para guerrilha, 5-absenteísmo dos seus donos, 6- economia voltada para a fabricação de um só artigo e 7- quando a população escrava era mais constituída de homens. Julgo interessante fazer este comentário, pois, acredito que possam existir correlações de estudos em diferentes especializações, para isso, seria preciso contar com uma Academia menos compartimentada e mais dinâmica. Magda Semprini - Matutino

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  2. Amanda Peruchi diurno29 de outubro de 2012 às 10:47

    Muitas vezes ao relacionar escravidão com a modernidade parece uma tarefa errônea já que quando pensamos um Estado moderno, rapidamente, entendemos que por ser moderno não existiria escravidão. Contudo, a partir do texto estudado em sala de aula, podemos observar que a escravidão foi um dos principais pilares do Estado moderno e que, provavelmente, sem o sistema escravista essa modernidade teria ocorrido de maneira diferente. Desse modo, observamos que a escravidão foi a base do sistema econômico da modernidade, que ela regeu as regras do Estado moderno que se instaurava, mas também analisamos que a escravidão é o lado obscuro do progresso do Estado. Seja como for o verdadeiro significado da escravidão para a formação do novo Estado, nunca podemos ignorar a importância que ela teve na constituição de um negócio bem lucrativo a esse Estado.

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  3. A escravidão na Modernidade, mais do que um sistema econômico, representou uma relação de poder entre o europeu e o africano, ou seja, uma relação social. Dizer que foi algo obscuro do Estado Moderno seria atribuir um juízo de valor que, para a época, não existia e, talvez, deturpe o entendimento que Blackburn aponta em sua obra. Escravidão e Estado conviveram a partir de diversas relações que explicavam e apoiavam um ao outro.

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  4. Certamente o elo entre modernidade e escravidão é bem mais estreito do que se possa imaginar. E não somente pela dependência do sistema escravista, mas também pela ponte que se criou, dessa realidade escrava, para novos conceitos que iriam vir a se firmar nesse século. O sentimento nacionalista, concepções de estado-nação, sociedade de consumo e identidade racial se tornam conceitos que passam a se desenvolver nessa sociedade. Idéias essas que se tornam tão ou mais importantes que o desenvolvimento econômico, pois agora, a influência seria no campo de idéias, que iriam acabar por definir a própria modernidade.

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  5. É interessante destacar que o escravismo moderno financiou, criou e partilhou a modernidade, inventou seus valores, hábitos e costumes próprios, que estão diretamente ligados à mesma como o hábito de tomar café e fumar tabaco. O escravismo, segundo o autor, não seria um produto do Absolutimo como o senso comum acredita, mas sim da modernidade. O autor destrói também a idéia de que a escravidão era motivada pelo Estado, dizendo que o motor da escravidão era a iniciativa privada de europeus e africanos.

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  6. Fica bem claro que o autor quer enfatizar e justificar essa relação da Modernidade com a escravidão, desde o início ele se apóia em autores que analisam essas características Modernas com base na desmistificação do esclarecimento, como Giddens, Sartre, Gilroy. O autor subverte a antiga "crença" da escravidão como produto do que é tradicional e atrasado Com isso ele dá margens para o entendimento do escravismo como processo pertencente ao progresso Moderno e justificado pela racionalidade deste processo.
    Um ponto que se liga inteiramente com essa descrição e que foi pouco debatido é a diferença dos regimes escravistas do mundo antigo com relação ao regime Moderno, este muito ligado a identidade e a uma necessidade de se justificar sob o argumento de civilidade. É importante lembrarmos que os primeiros liberais brasileiros discutiam fortemente esse assunto e se dividiam entre os que não aceitavam a escravidão diante do argumento de igualdade e os que contornavam essa dita igualdade sob o argumento de civilização versus barbárie.

    Carlos Manoel P. Vaz Jr. - 4HD

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  7. A escravidão tem profunda relação com a modernidade inclusive é com ela que se pode explorar a América e obter uma acumulação de capital gigantesca. Em um carta de Marx a Pável V. Annenkov, discutindo sobre o livro de proudhon coloca:

    “A escravatura directa é o eixo do nosso industrialismo actual, tal como as máquinas, o crédito, etc. Sem escravatura, não temos algodão; sem algodão, não temos indústria moderna. Foi a escravatura que deu valor às colónias, foram as colónias que criaram o comércio mundial, o comércio mundial é que é a condição necessária da grande indústria mecânica. Por isso, antes do tráfico dos negros, as colónias só davam ao velho mundo muito poucos produtos e não alteravam visivelmente a face do mundo. Assim, a escravatura é uma categoria económica da mais alta importância. Sem a escravatura, a América do Norte, o povo mais progressivo, transformar-se-ia num país patriarcal. Risque-se apenas a América do Norte do mapa dos povos e ter-se-á a anarquia, a decadência completa do comércio e da civilização modernos. Mas fazer desaparecer a escravatura seria riscar a América do mapa dos povos. Por isso a escravatura, sendo uma categoria económica, se encontra desde o começo do mundo em todos os povos. Os povos modernos só souberam disfarçar a escravatura no seu próprio seio e importá-la abertamente no Novo Mundo. “*

    A escravidão está agora, na modernidade, ligada a um sistema econômico que transforma todo o mundo conhecido, portanto tem profundas consequências para a formação das sociedades do nosso tempo. Não é de se estranhar que o racismo seja uma expressão ideológica, ainda que disfarçada, tão presente, pois pauta-se ainda hoje no desenvolvimento do capitalismo**.
    De fato temos toda uma contradição, que não se pode perceber senão vendo todo o ciclo do comercio mundial de mercadorias, dividindo o mundo (ainda hoje) em países que participam do centro do capitalismo e colônias ou semi colônias que participam da periferia do processo, contribuindo, antes com por meio do trabalho escravo, com as commodities, hoje com o trabalho precário e semi escravo. Desigualdade gerada na modernidade que perdura até nossos dias.

    *fonte:http://www.marxists.org/portugues/marx/1846/12/28.htm
    ** Malcoml X parecia estar correto quando disse que “sem racismo não existe capitalismo”

    Rene Cezarino Neto

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