domingo, 16 de setembro de 2012

A Escravidão na África e a “culpa” dos europeus


Caroline Rodrigues
Davi Machado da Rocha
Fernando Pereira dos Santos
Marisa Ap. Custódio Rossi

            Entende-se por escravidão moderna o processo estabelecido a partir do século XV pelos europeus, que abasteceu suas colônias em diversas localidades. Tal processo foi abordado por uma gama diversificada de autores pertencentes a diferentes linhas historiográficas, com ênfase nas temáticas de cunho mais localizado na relação entre senhores - escravos[1], até o estabelecimento de análises mais gerais, como a relação entre colônia e metrópole[2]. Entretanto, observamos que a perspectiva, entre autores pátrios, é a de delimitar tais questões como partes integrantes da História do Brasil, ou seja, o regime escravocrata é pensado como integrado por indivíduos provenientes de um continente longínquo, onde não são caracterizadas as diferenças étnico-culturais que existiam entre os mesmos.
            Desse modo, Paul Lovejoy[3] oferece uma perspectiva interessante sobre o tema, ao apresentar os modelos de escravidão consolidados em partes da África desde a Idade Média, notadamente naquele território sob domínio muçulmano, bem como a relação destas práticas com os viajantes europeus, que, como veremos, participaram ativamente deste processo (escravização) sem necessariamente impor-lhe suas regras. Tal abordagem torna-se ainda mais interessante quando empregada em comparação à bibliografia que se debruçou sobre o tema da escravidão, o que permite conjecturar possíveis razões para as atitudes variáveis de escravos frente a sua condição, como a resistência, por exemplo. Para que se compreenda essa questão se faz necessário apresentar as características particulares da escravidão no continente africano.
            Lovejoy aponta que a demanda por escravos era algo regular na África islâmica desde a Idade Média, tendo como marca fundamental o caráter doméstico da servidão. A partir disso é possível compreender o fato de a maior parte dos indivíduos escravizados no continente africano serem crianças, mulheres e eunucos. Segundo Paul os escravizados na África muçulmana poderiam cumprir funções variadas, tais como, concubinato, administração, defesa do senhorio através das armas, trabalhos agrícolas dentre outros.
            Mas como se dava o processo de captura? Todos os indivíduos estavam sujeitos à escravização? Além da coerção física, havia algum outro elemento que legitimava a escravidão entre os africanos? Lovejoy responde a essas questões apresentando uma carta datada de 1391-2 escrita pelo rei de Bornu, Uthman ibn Idris, onde questionava os métodos de escravização levados a cabo pelos mamelucos egípcios:

“As tribos árabes de Jhodam e outras tomaram os nosso súditos livres, mulheres crianças e velhos da nossa própria família, e outros muçulmanos (…) Esses árabes saquearam a nossa terra, a terra de Bornu, e continuam a fazê-lo. Eles tomaram como escravos homens livres e nossos pais, os muçulmanos, e estão vendendo-os para os negociantes de escravos do Egito, da Síria e de outros lugares, e retendo alguns para si mesmos (…) Envie mensageiros pelo seu país (…) deixe-os examinar e inquirir e assim descobrir. Quando eles tiverem encontrado nossa gente, deixe-os confrontá-los (…) Se eles disserem: 'Nós somos homens livres e muçulmanos”, então acreditem na palavra deles e não suspeitem que eles estejam mentindo, e quando a verdade se tornar clara, libertem-nos e façam com que eles retornem à sua liberdade e ao Islã.” [4]

            É possível observar no trecho em questão uma preocupação por parte do autor com o fato de muçulmanos sofrerem escravização, algo que, em teoria, estava relegado a indivíduos que não professam o islamismo. Além disso, também aparece no trecho o caráter violento do processo de obtenção de escravos, que eram obtidos por meio de conflitos armados. Lovejoy aponta que a captura poderia ser até mais violenta que a própria condição da escravidão – como a demanda era por mulheres e crianças, muitos homens eram executados após a captura –, algo que levou várias pessoas a se associar a um senhor com o intuito de obter proteção.
            Uma vez apresentadas essas questões, que nos ajudam a compreender a escravidão na África, cabe perguntar: qual o papel dos europeus nesse processo? Segundo de Lovejoy a escravidão moderna sob os moldes europeus se apropriou de redes comerciais pré-existentes na África, em um primeiro momento adaptando-se para posteriormente impulsionar tal comércio com outras regiões dentro e fora daquele continente. Aliás, o produto buscado pelos portugueses em seus primórdios era o ouro, utilizando-se dos escravos apenas como mercadoria para troca pelo precioso metal, além do que, depois de estabelecidas bases comerciais no continente, comerciantes não ligados à Coroa também participam ativamente do processo, vindo o monopólio a ocorrer apenas posteriormente.
            Assim, a escravidão era um sistema à margem da sociedade, que se transforma com a chegada de comerciantes europeus, deixando de ser empregado apenas para atividades internas, como a guerra e a mineração, transformando-se em um comércio de trocas por outros produtos que seriam levados para localidades diversas. O grande mérito de Lovejoy, portanto, é localizar a escravidão dentro de recortes geográfico-temporais específicos, delimitando características inerentes a escravidão praticada nas áreas de povoamento muçulmanas durante a Idade Média, bem como as transformações ocorridas nas localidades ocupadas pelos lusitanos.


[1] Cf. ALENCASTRO, L. F. O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
[2] Cf. REIS, J.J.  Negociação e conflito: a resistência negra no Brasil Escravista. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
[3] LOVEJOY, Paul. Nas fronteiras do islã (1400-1600). In: A escravidão na África: Uma análise de suas transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.
[4] LOVEJOY, Op. cit. Página 67

10 comentários:

  1. É possível entender um pouco mais a origem da escravidão. O tipo de escravo vendido para o mundo atlântico é diferente dos que são vendidos para os países islãs. Papel fundamental para a ordem social. Os cativos representam a principal mercadoria, eram vendidos para a venda. Quando eram usados para o mercado interno, eram vendidos para o mundo islamico. A fé era quem defendia a escravidão e depois passou a ser defendido por raça. Os escravos muçulmanos, teoricamente nã poderiam ser escravisados.

    Aluna: Lucimar Ranuzzi - noturno

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  2. É importante entender como a escravidão já existia em um período bem antes da época do grande tráfico do Atlântico. Afinal a escravidão já era bem estruturada, no período medieval, em várias sociedades africanas, sendo que o escravo era o principal produto de comércio, além disso, a existência de uma rede composta por seis rotas principais, localizadas entre o norte e o centro da África, no qual eram ligadas ao tráfico de cativos, demonstra ainda o quanto a escravidão era algo presente nessas regiões africanas. Junto a isso, essa complexa rede comercial era, em sua maior parte, alimentada pelos islâmicos, pois estes dominavam o norte da África (principal mercado para exportação de cativo) e influenciavam vários estados da savana setentrional.

    Filipe Faulin Valentim 4º História- diurno

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  3. Um aspecto interessante desse tema e que foi referido pelo texto acima é a relação da escravidão na África com o islamismo. A presença muçulmana nas regiões do norte da África contribuiu de forma significativa para uma nova estruturação política social e econômica do continente - antes mesmo das interações com os europeus. Além disso, os muçulmanos acrescentaram outras concepções, justificativas e problemas para a escravidão ali instituída. Nesse sentido, pode-se mencionar a contradição que havia nas justificativas para a escravidão: Ahmad Bãbã, um estudioso islâmico do século XVI condenava, por exemplo, a escravização de muçulmanos ao mesmo tempo em que defendia a captura daqueles que não aceitavam a religião Islã. Assim como outros muçulmanos de sua época, este estudioso teve dificuldades para conceber a escravidão dentro da sociedade muçulmana, mas encontrou na religião um fundamento tanto para defender o seu povo, quanto para não inviabilizar o bem estabelecido e lucrativo comércio de escravos dessas regiões.

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  4. Ressalta-se a perspectiva islâmica da escravidão. Os próprios governantes africanos justificavam a escravidão a partir do muçulmanismo: os prisioneiros de guerra poderiam ser normalmente vendidos e utilizados nas mesmas funções que detinham no mundo islâmico. Assim, poderiam ser soldados, administradores, concubinas, empregados domésticos, e até trabalhadores agrícolas. Ocorreu em África um processo conjunto entre alguns estados africanos que participavam ativamente da captura de indivíduos que seriam vendidos como escravos e a expansão da influência islâmica na África subsaariana.

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  5. Arthur Jorge Dias de Morais Coelho28 de novembro de 2012 às 12:04

    Acho que é importante ressaltar que na Àfrica a escravidão é mutável diante das relações que os povos africanos mantêm com os mulçumanos e os europeus. No primeiro momento, mantendo relações com os mulçumanos, a escravidão é uma mera consequência de guerras e razias cujo o motivo é político, para sanar necessidades de terra, água e etc. Nesse primeiro momento, o número dos escravos varia, é alto em períodos de destruição de sociedades e civilizações mais permanentes, mas é baixo em outros momentos, apesar de uma demanda constante o número de escravos vendidos para os mulçumanos é pequeno, portanto diante das relações com os mulçumanos a escravização não é mercantilizada.
    Em um segundo momento, com a presença dos portugueses no continente, ocorre essa mercantilização, em outras palavras o motivo de muitas guerras e conflitos era criar escravos que pudessem ser vendidos aos portugueses.Como consequência, o número de venda de escravos aumentou significativamente em relação ao período mulçumano.
    Vale lembrar que o autor procura nos lembrar que na África a escravidão funcionava, nos dois momentos (mulçumanos e portugueses), como um cimento social que ao mesmo tempo em que unia as sociedades criava profundas desigualdades entre seus membros.

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    1. Arthur Jorge Dias de Morais Coelho28 de novembro de 2012 às 16:58

      Arthur Jorge Dias de Morais Coelho - Quarto ano - Noturno.

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  6. É importante também ressaltar que mesmo quando a justificativa para a escravidão tornou-se o islamismo, sendo assim passíveis de escravizar os não islâmicos, em determinados momentos mesmo aqueles que se diziam convertidos acabavam escravizados, o que resultou na preocupação de historiadores da época. Não poder ser escravizado após converter-se ao islã fez com que muitos se convertessem e isso dificultou cada vez mais suprir a demanda. Assim, por vezes eram tomados por escravos pessoas que diziam professar a fé islâmica, por isso muito se ressaltava pelos intelectuais preocupados da época que se tivesse certeza de não ser convertido aquele que era tido por escravo.
    Importa também apontar como isso refletiu na escravidão portuguesa, pois muitas vezes eram trazidos para o Brasil como escravos pessoas convertidas ao islã, o que resultava em recusa a aceitar sua condição, pois em seus valores sabiam que não poderiam estar sujeitos a escravidão por serem convertidos.

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  7. Richard Jonathan Castro, 4 História - Noturno

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  8. O comentário que sintetiza todas as discussões deste texto, como demonstrou Lovejoy, foi como a influência européia na África teria ajudado a disseminar a escravidão no próprio continente e implantar um modo de produção escravista. Esse tipo de escravidão teria assim um significado dif erente para os africanos e para os países de diáspora. Em ambos os casos os escravizados sempre eram levados para longe de seus locais de origem porém, no caso africano, os mecanismos de escravidão – comuns na maioria das sociedades escravistas –
    totalmente atrelado ao tráfico de escravos e à utilização de escravos em suas diversas instâncias.
    Wendell Blois - Noturno

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  9. Arthur Jorge Dias de Morais Coelho - Quarto ano de história, Noturno29 de novembro de 2012 às 10:59

    Acho que é importante ressaltar que na Àfrica a escravidão é mutável diante das relações que os povos africanos mantêm com os mulçumanos e os europeus. No primeiro momento, mantendo relações com os mulçumanos, a escravidão é uma mera consequência de guerras e razias cujo o motivo é político, para sanar necessidades de terra, água e etc. Nesse primeiro momento, o número dos escravos varia, é alto em períodos de destruição de sociedades e civilizações mais permanentes, mas é baixo em outros momentos, apesar de uma demanda constante o número de escravos vendidos para os mulçumanos é pequeno, portanto diante das relações com os mulçumanos a escravização não é mercantilizada.
    Em um segundo momento, com a presença dos portugueses no continente, ocorre essa mercantilização, em outras palavras o motivo de muitas guerras e conflitos era criar escravos que pudessem ser vendidos aos portugueses.Como consequência, o número de venda de escravos aumentou significativamente em relação ao período mulçumano.
    Vale lembrar que o autor procura nos lembrar que na África a escravidão funcionava, nos dois momentos (mulçumanos e portugueses), como um cimento social que ao mesmo tempo em que unia as sociedades criava profundas desigualdades entre seus membros.

    Arthur Jorge Dias de Morais Coelho - Quarto ano de história - Noturno

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