domingo, 9 de outubro de 2011

Das ruas aos terreiros: a formação da religiosidade afro-brasileira

Camila Comerlato
Ciro Chiarelli
Melissa Toledo Borges
Raphael Gomes de Almeida

Luis Nicolau Parés, especialista na área da história e antropologia das populações afro-brasileiras e da África Ocidental, com foco principal sobre suas religiões, etnicidades e antropologia visual, aborda em seu texto “Do Calundu ao Candomblé: o processo formativo da religião afro-brasileira”, os principais aspectos que rondavam os rituais afro a partir do século XVII, principalmente no que tange ao sincretismo religioso e sua importância na formação da sociabilidade religiosa afro-brasileira.
O autor reflete sobre a estrutura das religiões, utilizando como alicerce o pensamento sociológico de Ioan M. Lewis, diferenciando-as segundo a sua organização. De acordo com a análise, as religiões se dividem entre instituições centrais e instituições periféricas. As primeiras caracterizam-se como arcabouço de controle social e econômico da sociedade e as últimas agem na marginalidade da conjuntura vigente, sendo mais flexíveis e dinâmicas. Foi dentro do quadro referencial desta última que se situam no Brasil, entre os séculos XVII e XIX, os calundus, termo genérico para designar os aspectos ritualísticos das crenças africanas, desde festas religiosas aos místicos videntes e curandeiros.
A partir da migração forçada pela escravidão de indivíduos originais de determinadas regiões africanas, negros escravos encontraram nas expressões religiosas por eles trazidas, um espaço fecundo para sua própria sociabilidade, se agrupando por práticas e rituais comuns. Em um primeiro momento, quando o fluxo de escravos vindos para o Brasil era constante, a associação por grupos étnicos era mais comum e definiam o conceito de nação de acordo com a proveniência africana. Com o minguar do tráfego de escravos, as associações étnico-políticas, gradualmente perdem esse caráter e as nações se reestruturam com paradigmas teológicos, fundamentando a institucionalização do Candomblé. A partir desse momento, um indivíduo poderia fazer parte de várias nações ao mesmo tempo, dependendo apenas da ‘iniciação’ religiosa.
Dicotomicamente às religiões de revelação, as crenças africanas eram baseadas na ideia de “fortúnio-infortúnio”, definidoras do aspecto utilitário da fé, onde a religião procuraria sanar os problemas mundanos, provendo conforto e superação diante das mazelas da vida e conseguir a gratificação esperada com a devoção. Esse modelo pode ser aplicado à inteligibilidade do catolicismo popular, com seus santos e promessas, garantindo uma sincronia com as crenças africanas, o que facilitou a adesão do catolicismo por parte dos negros e possibilitou o sincretismo religioso presente na religiosidade afro-brasileira. Os negros participavam tanto do misticismo calundu quanto do misticismo católico, o que não parecia contraditório. Havia irmandades católicas de negros encorajadas pelas elites senhoriais que podiam ser legitimamente católicas, mas também podiam nutrir elementos de imbricamento com o legado pagão. Isso não exclui a existência de grupos que às utilizavam como fachada para ocultar a adoração de suas verdadeiras crenças. O cenário brumoso e inconstante da prática e sociabilidade religiosa fomentava constantes atritos com a religião-central, a igreja católica, que mantinha vigilância sobre as irmandades negras. O texto apresenta relatos de perseguição aos calundus que ocasionava freqüentes prisões, a igreja não distinguia as práticas que visavam malefícios das benignas, considerando todas “feitiçaria”.
As principais práticas dos calundus, evidenciando seu caráter de “fortúnio-infortúnio”, eram o curandeirismo e a vidência, executadas por místicos mais ou menos autônomos, com um secto limitado de seguidores e de práticas nômades. Gradualmente, com o estabelecimento da necessidade social de tais práticas, que aderiam inclusive adeptos brancos, os calundus avançaram em complexidade nas suas práticas sociais e passaram a erigir altares onde estabeleciam locais fixos para manutenção de seus ritos, o que não substituiu a existência de práticas individuais e congregações inferiores. A partir desses espaços ritualísticos deram-se no início do século XIX a consolidação de uma rede social extra-doméstica que de sua interação possibilitaram o surgimento de uma religiosidade afro-brasileira sólida, exemplificada pelas nações do Candomblé.
Conclui-se que o Candomblé, bem como outras práticas culturais de origem americana são fruto de um processo dialógico de reestruturação e ressignificação da herança africana e não africana, estabelecendo a gênese de elementos culturais nativos próprios do contexto onde surgem.

PARÉS, Luiz Nicolau. Do Calundu ao Candomblé: o processo formativo da religião afro-brasileira. In: A Formação do Candomblé: história e ritual da nação jeje na Bahia. Campinas: Editora Unicamp, 2007, p. 101-123.

12 comentários:

  1. O estudo de Parés demonstrou que o processo de formação do Candomblé, religião afro-brasileira, se deu de forma “linear” e “evolutiva”. Indo da “simplicidade à complexidade”, esse processo foi iniciado com a diáspora [forçada] dos africanos para o Brasil. Retirados de suas sociedades, os africanos chegaram ao “novo mundo” desprovidos de suas instituições, mas não de suas práticas, valores e crenças, configurando o que Parés chamou de “fragmentos de culturas”.
    A princípio, os fragmentos de culturas religiosas africanas - designadas genericamente, no século XVIII, pelo termo “calundu” - eram praticadas, predominantemente, de forma individual, como, por exemplo, processos de adivinhações e curas. No entanto, alguns documentos da primeira metade do século XVIII referem-se à reunião de pessoas para “fazer calundus”. Tais reuniões, feitas de forma secreta nas casas e roças, com oferendas, altares e sacrifícios de animais, são precursoras dos Candomblés que se formariam no século XIX. A hipótese de Parés é que, a partir das tradições dos povos africanos da Costa da Mina, como os jejes - que foram demograficamente predominantes na Bahia do século XVIII - que apresentavam antecedentes de institucionalização, começaram a se organizar, de forma incipiente e doméstica, os calundus como práticas coletivas e dedicadas, geralmente, ao culto de uma única divindade. Posteriormente, no início do século XIX, essas organizações tornaram-se mais complexas e hierarquizadas, com espaços extradomésticos para as práticas dos rituais e ampliação do culto de divindades, configurando o “estágio final” do processo de formação da religião afro-brasileira, quando o Candomblé pode ser entendido como uma organização religiosa estabelecida. Apesar de Parés ter caracterizado o processo formativo do Candomblé como “evolutivo”, isso não significa que as práticas individuais, frente ao surgimento dos cultos mais complexos, desapareceram. Os cultos individuais e domésticos e o desenvolvimento dos cultos extra-domésticos e coletivos existiram paralelamente.
    Por fim, é importante ressaltar que, apesar de certos elementos africanos persistirem em suas práticas religiosas e culturais no Brasil - como a questão das instituições, presente nas tradições dos jejes - muitos outros elementos, valores e práticas passaram por um processo de ressignificação e reconfiguração, em razão do novo contexto social em que estavam inseridos.

    Jéssica Nunes - 4º História Diurno.

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  2. Particularmente, o que me chamou a atenção neste texto foi o fato de que novamente essa característica de "adaptabilidade" da cultura africana aparece nas discussões propostas.
    Digo isso rementendo ao texto de John Thornton, que pensava a cultura africana como instável e flexível em grande parte de seus elementos.

    Sendo assim, no que concerne ao aspecto religioso, fica demonstrado o quanto essa capacidade de reconfiguração da cultura africana foi essencial para sua sobrevivência neste novo ambiente, visto que a cultura afro-brasileira se constitui com base na conjunção de elementos distintos, mas que quando unidos acabam por dar forma a um todo. Um exemplo disto é justamente este citado no texto, da coexistência das duas religiões - o candomblé e o catolicismo - e dos escravos que se dedicavam ao culto não apenas de sua religião, mas também do catolicismo.

    Isto acaba por comprovar a força da cultura africana, que, ao mesmo tempo em que os nativos se esforçam por preservar suas raízes e dar manutenção às suas tradições, sabem reconhecer que sua cultura precisa se modificar e se reestruturar para continuar sobrevivendo em um ambiente distinto.

    Concordo, portanto, com a análise realizada por Parés, bem como com o texto escrito por meus colegas. O Candomblé é, de fato, fruto de processos de "reestruturação e ressignificação" de elementos africanos e atlânticos.

    Pollyanna Menegheti - 4º História Diurno

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  3. Concordo com a Pollyana, acredito que nos textos tratados o que é frequente esta sempre nesta "adaptabilidade" da cultura africana, ou no que podemos chamar também de eterna busca por esta cultura africana, uma busca as vezes cega pelas permanências do que seria constituído como cultura africana no que temos ainda nos dias atuais, que já estaria no âmbito das religiões, e incluiria o candomblé, por exemplo. Mas novamente, mesmo entendendo o processo de adaptação e remodelação de que se trata a cultura africana, ainda resta os velhos questionamentos de como poderia ser chamado de cultura africana depois de um processo tão longo de mudanças, aproximação e trocas culturais. Entende-se que essa reestruturação foi fator essencial para a sobrevivência da cultura, mas sua significação talvez não esteja sendo de fato encarada do modo a fazer sentido sua real representação na sociedade. Por isso, nesta questão, discordo da Pollyana, pois já não consigo concordar com o fato disto comprovar a chamada "força da cultura africana", que em minha opinião esta sendo fantasiada.

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  4. Em seu texto de Luis Nicolau Parés aborda o processo formativo da religião afro-brasileira, antes de sua analise, ele ressalta e descreve alguns pontos interessantes.

    Ele utiliza a linha interpretativa da funcionalidade da religião segundo a proposta dos pesquisadores da África central nos anos 60-70, pois também se aplicam ás religiões afro-brasileira. Este é o modelo ‘ventura-desventura’, segundo o qual a atividade religiosa tem por objetivo não só ‘a prevenção do infortúnio’, mas também ‘a maximização da boa sorte’

    Luis Parés também se utiliza da terminologia de Ioan Lewis quanto ás praticas religiosas, dividindo –as em instituições centrais – indissociavelmente imbricado na organização sociopolítica e sancionada pela autoridade legal e moral do rei e dos chefes das linhagens – e instituições periféricas – grupos subalternos que estabelecem relações dialéticas ou de contraste, como uma forma ritualizada de protesto ou rebelião

    Seja de um modo ou de outro, “as praticas religiosas se organizam e desenvolvem a partir da existência de instituições sociais que garantem a sua expressão” (p.109)

    “No caso da diáspora forçada da população africana no Brasil (...) transladaram para o novo espaço social uma pluralidade de culturas (...) na forma de memória e de experiência individualizada, os escravos levaram ‘fragmentos de cultura’, porém desprovidos das instituições sociais que lhes davam expressão “ (p.109)

    A comunidade religiosa afro-brasileira resultou do processo de reconstrução de novas instituições religiosas pela pluralidade de fragmentos culturais
    Essa reconstrução, essa reinstitucionalização das religiões africanas não ocorreu apenas como forma coletiva de resistência cultural, mas em primeira instância, pela necessidade de enfrentar os infortúnios conforme o ‘complexo ventura- desventura’ e maximizar a boa sorte’.
    “esse processo se deu através de um progressivo nível de complexidade social e ritual. De um estágio inicial, em que ‘fragmentos de cultura religiosa’ foram retomados e postos em prática por pessoas carismáticas que atuavam de uma forma relativamente individual e independente (...), passou-se pela formação das primeiras congregações religiosas de caráter familiar ou doméstico, geralmente dedicados ao culto de uma só divindade, até se chegar à formação de congregações extra-familiares, socialmente ainda mais complexas nas suas estruturas hierárquicas e praticas rituais, que com o tempo chegaram a funcionar com certa estabilidade em espaços próprios, com calendário litúrgico recorrente e dedicadas ao culto de uma pluralidade de divindades, ‘assentadas’ em altares ou espaços sagrados individualizados” (p. 118)

    Essas congregações extra-domesticas estabeleceram relações de interação, de cooperação, de complementaridade e de conflito, entre si; somente deste modo pode-se falar de uma comunidade religiosa afro-brasileira e do surgimento do candomblé

    Isso contudo, não significa que o processo formativo do candomblé deve ser explicado de um modo direto e linear, ou seja, pela transferência de elementos da África para o Brasil, pois é preciso ressaltar que a reinstitucionalização dos valores e práticas religiosas dos africanos no Brasil foi marcado pela reconfiguração e ressignificação de elementos de uma multiplicidade de origens, assim como a ‘criação’ de outros, resultado de um novo contexto social e do mesmo processo formativo

    Ricardo Abib

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  5. Mintz e Price em “O nascimento da cultura afro-americana” colocam que uma sociedade afro-brasileira só é formada, passando a compartilhar uma mesma cultura, na medida e velocidade que os próprios negros escravos a criavam. Nasce um sentimento de comunidade quando as formas socioculturais de cada grupo étnico são deixadas de lado e uma identificação é encontra nos valores. Nesse momento nascem as primeiras instituições afro-brasileira, e a religião afro-brasileira, como percebemos no texto de Parés também foi resultado da construção de instituições religiosas baseadas em fragmentos culturais e nas diferentes religiosidades dos diversos povos, que aqui na América, tiveram que buscar nas pequenas semelhanças o sentimento de comunidade.

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  6. Cabe ressaltar como a vida do escravo encontra sentido nessas manifestações religiosas, onde ele possui rituais próprios e a identificação com uma nação africana específica, assim como a identidade com os outros escravos. É na religiosidade que o escravo será inserido numa vida social própria, pois, as relações sociais do escravo se restringiam à relação com seu senhor. Através do candomblé e dos calundus, o escravo conseguirá se manifestar sem a necessidade do senhor, ou seja, fora das relações de poder. São nessas manifestações que o escravo encontra um meio de identificação, um reforço de sua identidade, além de encontrar nelas um refúgio perante o sofrimento provocado pela escravidão, e a partir delas poderá afirmar sua individualidade para além da dinâmica do trabalho e da condição de escravo.

    Laísa Almeida
    4° História Diurno

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  7. Luis Nicolau Parés desenrola a história dos jejes na Bahia e a entrelaça à da própria formação do candomblé. Para o autor, os cultores dos voduns seriam responsáveis pela organização dos candomblés numa estrutura eclesial ou conventual, e teriam trazido da África o culto sucessivo de várias divindades ao mesmo templo. O que não se conhece entre os iorubás no outro lado do Atlântico e tem sido interpretado como uma criação brasileira, resultante das condições sociais determinadas pelo regime escravista, sobretudo no âmbito urbano e em Salvador.

    Daniel Mazinini Rosa - Matutino

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  8. A partir da leitura do texto de Parés constata-se a configuração de um sincretismo no desenvolvimento das religiosidades aqui praticadas. Vejam, ao se caracterizar a ideia de instituições religiosas centrais e periféricas no espaço restrito da África é possível demonstrar como se configurava um processo de ressignificação de símbolos e práticas religiosas, processo constituído a partir de uma interação dialógica, no sentido que propõe Mikhail Bakhtin. Relação que já no continente americano teria escopo na formação do Candomblé, já no século XIX, como pratica institucionalizada. Portanto, Parés aponta para um significativo processo de ressignificação das práticas religiosas que veio a constituir uma pratica cultural, de fato, genuína no Brasil a partir dos elementos diversos que se configuraram nestas varias manifestações.

    Rodrigo Rufino - Noturno

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  9. Podemos refletir neste texto a simultaniedade, sintonia do processo de continuidade e descontinuidade dentro das reinterpretações e resignificações presentes na formação da cultura afro-brasileira,especificamente neste texto em relação ao calundu que tornar-se complexo e permitirá a efetivação do candomblé. Muitos escravos da Bahia eram oriundos de uma região da Africa ocidental em que já estavam familiarizados com a institucionalização, fator que contribuiu para que quando chegassem no Brasil buscassem institucionalizar a religião. Os valores trazidos e resignificados em interação com os aqui já existentes neste continente permitiram um desenvolvimento das práticas que as tornaram institucionalizada. O conceito de nação que no inicio os senhores de escravos retomavam para definir ou identificar os grupos de escravos, trazidos da Africa, etnicamente foi com o tempo se resignificando e transporta-se da esfera política e da visão etnica para as próprias práticas religiosas e ritualisticas dos escravos. O conceito de nação é reapropriado pelos grupos de candomblé para criar uma identidade própria. O fim do tráfico de escravos possibilita uma mudança na sociabilidade dos escravos e estes passam a se identificarem entre si a partir das nações, mas agora com este conceito e valores instituconalizado na religião. Essa nova nacionalidade passa a ser compartilhada pelos escravos e a forma de tocar seus batuques, que variam de região para região, as roupas, o modo de falar, o ritual, a palavra, a entidade tornam-se fatores constituintes de sua própria identidade e forma com valores africanos e outros não africanos e também com um sincretismo com o catolicismo popular o candomblé, que simboliza a religião afro-brasileira. Kéllyta Veiga.

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  10. Luiz Fernando Perez da Rocha Santos24 de novembro de 2011 às 14:11

    Luis Parés utiliza conceitos de Weber e Malinowski para apontar a funcionalidade da religião no sentido de extirpar sofrimentos e situações de pressão emocional trazendo sentido à existência.
    Através desse enfoque, observamos a existência de de elementos e práticas que segundo o autor serão de grande importância para a sustentabilidade da vida. O ritual portanto, mesmo marginalizado será o vetor da conexão com o mundo espiritual. Vale ressaltar que nas sociedades africanas a religião constitui uma parte mais integral e central.

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  11. Em “Da nação ‘étnica’ à nação de candomblé” Luis Parés explica que a dinâmica da diferenciação étnica entre as diversas nações africanas encontra um contexto privilegiado de expressão no que diz respeito aos ajuntamentos festivos e práticas religiosas. Cada nação possuía instrumentos e danças próprios, e se diferenciavam pela língua, pelos cantos e os instrumentos utilizados, que serviam de formas de diferenciação das distintas identidades étnicas. Entretanto o conceito de Nação foi limitando-se à praticas religiosas, como o padrão ideológico ritualístico dos terreiros de candomblé e da moralidade do rito. Essa flexibilidade levou à um grande ecletismo, sendo freqüente um terreiro identificar-se com varias nações hipoteticamente exclusivas.

    Bruno Belmonte

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