quinta-feira, 6 de outubro de 2011

O Nascimento da Cultura Afroamericana

Daniel Rosa
Joice Prado
Luiz Fernando Sampaio

Oferecendo uma perspectiva antropológica acerca da instalação inicial dos africanos no Novo Mundo, os autores Sidney Mintz e Richard Price, acreditam que esse início carrega em si as “linhas de base” que caracterizariam as comunidades afro-americanas posteriormente.
No processo de colonização da América portuguesa, mostram que é desnecessário enfatizar que europeus e africanos tiveram participações muito diferentes. Entretanto, acreditam que no processo de transposição de suas culturas (levando em consideração que nenhuma pode se manter intacta ao transferir-se de um lugar a outro), os europeus podem se dizer mais homogêneos do que os africanos.
Ainda que afirmem ser a tese proposta de caráter provisório, e aqui sem dúvida nenhuma pisando em terreno delicado, acreditam que mesmo os europeus possuindo algumas diferenciações entre si devido às diferenças de localidades em que viviam anteriormente, possuíam mais condições de se assumirem enquanto comunidade do que os africanos, retirados como eram de diferentes partes do continente, que muitas vezes pouco ou nenhum contato tinham entre si.  
Partindo de uma postura crítica frente à Antropologia tradicional que durante muito tempo encarou a África como detentora de traços culturais únicos e homogêneos, os autores afirmam que dificilmente pode-se aplicar o termo “cultura” para caracterizar o período anterior à colonização. Nas próprias palavras dos autores, a única coisa que os escravos compartilharam no começo, inegavelmente, era sua escravidão.
Nesse sentindo concordamos com os mesmos, já que partindo de lugares muitas vezes extremamente diferentes entre si, os primeiros africanos podiam mais ser considerados uma multidão heterogênea do que uma comunidade que rapidamente desenvolveu algum sentindo igualitário apenas por pertencer ao mesmo continente. Se pensarmos nos processos históricos que regeram o período colonial e, mais que isso, regeram as ações humanas, não podemos simplificar nosso pensamento ao cair no lugar comum de acreditar que em um curto espaço de tempo duas ou mais pessoas começariam a se entender enquanto pertencentes a uma mesma cultura.
Nessa linha de pensamento, mostram que qualquer traço de cultura que venha posteriormente caracterizar-se enquanto única na comunidade africana, foi antes de tudo construída pelos mesmos.  Para que as comunidades ganhassem forma, nas palavras dos autores, padrões normativos de conduta tiveram de ser criados, e esses só poderiam ser criados mediante determinadas formas de interação social.
Assim, a criação de instituições que se mostravam necessárias à vida cotidiana foi a grande tarefa organizacional dos africanos escravizados, ainda que dentro das condições limitantes que a realidade lhes impunha. “Instituições”, aqui, ficam definidas pelos autores como qualquer interação social que passasse a ser recorrente: determinada forma de culto, um dado padrão para o estabelecimentos de amizades, formas de realizar casamento, entre outros.
Utilizando como exemplo a língua, os autores também buscam demonstrar a complexidade que envolve o termo “cultura”. Mostram que no início a variedade de línguas falada era imensa, sendo a única comunicação comum os “pidgins”, linguagem abreviada utilizada principalmente no comércio e que provavelmente foi a primeira forma de contato entre senhores e escravos. Posteriormente, essas contrações da língua começaram a ganhar contornos populares, servindo para a comunicação geral. Por fim, quando esse tipo de linguagem deixa de ser apenas um “pidgin” e começa a ser ensinada às crianças como língua natural aceita, ela passa a ser “crioula”.
Nesse sentido, mostram que não basta nos atermos ao estudo da estrutura, sintaxe e morfologia de uma língua crioula, mas também nos atermos a discussão de como essa língua é utilizada, por quem e em que circunstâncias sociais. Os conjuntos sociais e culturais, na concepção dos autores, devem caminhar juntos, posto que tratar a cultura apenas como um conjunto de traços similares é perder de vista a forma como as relações sociais são feitas através dela.
Para os autores, a maior contradição do sistema escravocrata – que permitiu a adaptação e posterior resistência por parte dos negros – está no fato de que os senhores tratavam seus escravos como bens e maltratavam-nos como animais, mesmo assim, exigiam que se comportassem como homens. Entretanto, sabendo esses senhores que um animal não aprenderia uma língua nova e nem elaboraria formas de resistências ativas ou veladas, ainda sim não os admitiam enquanto seres humanos.
Sendo essa a contradição fundamental do sistema, quando levada em conta, mostra que uma sociedade divida apenas em duas camadas se tornava impossível. Ainda que os senhores interiormente esperassem que com a postura e os castigos corretos os escravos terminariam por reconhecer sua condição de inferiores, o fato de saberem que lidavam com seres humanos, tanto quanto eles, inviabilizava o projeto de manter um sociedade baseada no status, transformando essa em uma idéia ilusória.
Como lembram os autores, as relações entre livres e cativos se deu de forma complexa, permeada pela consciência da dependência mútua. Os escravos não eram apenas mão-de-obra nas plantações de cana, mas também artesãos, carpinteiros, criadores de animais, etc, dentro e fora das casas grandes. Aos poucos, para além dos trabalhos que originavam rendimentos, os escravos adentraram as casas dos senhores para cuidarem dos bebês e fazer a comida. Assim, era clara a relação de “dar e tomar”, da qual ambos os lados tinham consciência. Os escravos sabiam que os senhores eram dependentes de sua força de trabalho, fosse ela qual for, mas também sabiam que aqueles possuíam meios eficazes de castigo e tortura, separação forçadas de famílias, dentre outros.
Essa consciência e o contato entre as duas camadas, entretanto, não diminuía o abismo social que as separava. Ameaça real, porém, começou a se fazer com o surgimento de uma camada intermediária, a dos crioulos, fruto das relações sexuais inevitáveis. O lugar social desses era incerto e ameaçava romper o sistema dual. Esse meio ligeiramente confuso começa a ganhar força quando os escravos passam a fazer parte efetiva da sociedade, como negociantes (posto que também possuíam seus próprios pequenos pedaços de terra, onde cultivavam sua subsistência), como músicos nos bailes e festas, camareiros, acompanhantes, damas de companhia, amas de leite e até mesmo educadores.
Assim, os autores mostram que é corrente pensarmos no poder e influência que as classes dominantes exerceram sobre as inferiores, mas que a via contrária também deve ser lembrada, já que os escravos afetavam e até controlavam partes importantes da vida dos senhores. Dessa forma, constroem um panorama profundamente dual e dividido pelo status, mas complicada principalmente pelo contato freqüente e profundo de ambos os lados.

Texto: MINTZ, Sidney; PRICE, Richard. O Nascimento da Cultura Afro-americana: uma perspectiva antropológica. Rio de Janeiro: Pallas, 2003, p. 19-58.  

8 comentários:

  1. Vale ressaltar que este texto de Sidney Mintiz e Richard Price nos faz refletir sobre os "rótulos" e modelos que são usados quando tratamos da questão do escravo e de sua cultura. Sabe-se que ainda hoje a idéia comumente aceita é aquela criticada pelos autores: da "aculturação" dos escravos pelos europeus. No entanto, no meio acadêmico esta perspectiva já é - ou está se tornando - ultrapassada, em decorrência, principalmente da Nova História e da ascenção dos Estudos Culturais.

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  2. Podemos fazer um paralelo dessa questão da retirada dos africanos de localidades diferentes da África com uma informação do texto do Thornton, quando ele ressalta que os africanos tinham mais contato uns com os outros no Novo Mundo que no seu continente de origem. Também a questão da linguagem que, primeiramente para se fazerem entender entre eles mesmos e para com seus senhores, foi necessário se utilizarem dos "pidgins", que foi evoluindo ao longo do tempo, se tornando mais tarde, a língua crioula.
    É interessante também a forma como os escravos marcaram a vida de seus senhores, existindo assim uma recíproca, de que não foi apenas os senhores que controlavam e influenciavam a vida dos escravos, mas os escravos também possuíam alto grau de influência na vida daqueles, principalmente na dependência que os senhores tinham do trabalho dos mesmos.

    Marina Bianchi - diurno

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  3. É interessante pensarmos na abordagem que os autores propõem sobre o tema, principalmente, no que diz respeito ao papel dos escravos assumindo posições sociais relevantes e afetando diretamente o modo de vida dos senhores.

    Vale ressaltar que o trabalho dos escravos ia muito além do trabalho nas plantations, e muitas das tarefas pelas quais estes se tornavam responsáveis, necessitavam de um mínimo de contato com os "detentores de poder". Nesta maior aproximação, os escravos acabavam por assumir responsabilidades muito grandes em uma sociedade aparentemente tão bem delimitada em seu status. O papel educativo que alguns assumiam, exemplo que os autores colocam no texto,como caso de o filho do senhor ser criado por uma babá escrava, é significativo, pois representa esta aproximação que acabava por dar certo grau de poder àqueles, teoricamente, desprovidos de poder e que, consequentemente, ocasionava em uma dependência dos senhores com relação a seus escravos.

    Percebemos então que, apesar da clivagem social existente, e apesar de muito se ter defendido academicamente sobre a predominância de uma cultura branca sobre a cultura afro-americana, havia uma interação social muito grande. Aspecto este pouco estudado até então.

    Assim sendo, os autores nos proporcionam uma outra perspectiva que vem de encontro a uma historiografia que defendeu então este posicionamento da cultura européia como predominante e impositiva, relegando a importância de se atentar aos aspectos dessa intensa interação cultural.


    Amanda Cristina Stefan – 4º Diurno

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  4. É interessante observar que ao repensar a perspectiva do nascimento da cultura afro-brasileira, os autores pontuam o fato desta nascer das diferentes formas de culturas dos povos que aqui chegaram para serem escravizados e que levados pelas condições se viram obrigados a encontrar uma forma de interação nas poucas coisas que tinham em comum, e assim construíram uma cultura e uma língua própria. Muitas das “instituições” que nasceram daí buscando organizar a vida cotidiana dos escravos são as principais heranças dessa cultura afro-brasileira que temos hoje, um exemplo seria o candomblé, que criado pelos escravos em terras brasileiras tornou-se uma religião com fortes traços africanos, mas não sendo a mesma que qualquer outra religião da África.

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  5. Complementando os comentários acima, acredito que a contribuição dos autores também reside no fato de darem luz a uma questão importante, mostrarem que não existiu uma homogeneidade cultural dos negros vindo para o Brasil, como já antes já afirmado por outros estudos, já que não é possível transpor de maneira intacta uma cultura de um lugar para o outro, até mesmo os próprios europeus possuem diferenciações entre si.
    Além dessas colocações os autores também descartam a hipótese de que os negros vieram de uma mesma nacionalidade,logo não poderiam partilhar de uma mesma cultura. A herança cultural africana foi amplamente compartilhada na colônia e isso não se deu exclusivamente no sentido da organização social, e sim nos valores, costumes etc..Assim como a Amanda disse acima, embora o discurso acadêmico fale de uma predominância da cultura européia em relação à negra o que observa-se é uma grande interação entre ambas.

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  6. Pode-se destacar que um dos pontos centrais do texto – inclusive da proposta do curso – fixa-se na compreensão do surgimento e amadurecimento de uma cultura americana. Segundo os autores Price e Mintz a cultura americana se desenvolve graças ao contato do europeu, que se transfere para o novo continente forçando das formas possíveis a reprodução de seus hábitos, com os africanos oriundos de diversos locais que são trazidos sob a condição de escravos. Como já foi discutido em sala e mesmo aqui, apesar da condição de cativo o negro africano não deixa de ser um indivíduo ativo dentro da sociedade colonial, e, segundo o texto, eles não compartilhavam uma cultura africana definida, porém a condição imposta a todos somada a alguns traços étnicos/culturais que compartilhavam propiciou o surgimento de instituições organizadas entre eles. A cultura americana, ou afro-americana, descende desse embate de diversos fatores socioculturais distintos provenientes principalmente do continente europeu e africano dentro da sociedade que não limitava-se em camadas impermeáveis, mas que fazia um intercambio constante de elementos.

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  7. Ponto central das discussões apresentadas durante o curso é o caráter inédito das culturas americanas, que por um lado, trazem consigo memórias culturais dos diversos povos envolvidos, por outro, apresentam essas em relações novas umas com as outras e formando um todo diverso do que eram separadamente. Com isso em mente, a formação de culturas americanas, e afro americanas mais especificamente, se dá primordialmente na dinâmica social das sociedades coloniais. Quer dizer que a condição da escravatura imposta aos africanos trazidos pelo Atlântico de forma alguma inibiu seu caráter criativo no que diz respeito a essa mesma dinâmica social, e o deparar-se com o diverso, o europeu, gerou a antítese necessária para seu próprio desenvolvimento, claro que restrito por diversas condições, mas desenvolvimento ainda assim.

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  8. Entende-se por cultura o modo de vida,os costumes, a língua, as crença, ou seja, os sistemas simbolicos que expressão e organizam um povo. Assim, um dos pontos relevantes na compreensão do encontro entre povos de culturas diferentes é a indagação sobre as permanências e rupturas advindas desse contato. No texto " O nascimento da cultura Afro-americana", percebe-se o contraste das populações europeias e africanas. Ao ressaltar que " nenhum grupo" tranferi de maneira intacta sua cultura, nota-se como resultado desse encontro- no qual cada um contém características únicas- uma cultura com itens da memória africana e europeia. Nesse sentido como o Ciro disse acima, a formação de culturas afro-americanas se dá na própria dinâmica da sociedade colonial.

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