Josemar Pereira
Lucas Antônio da Rosa
Maikel do Carmo
Thiago Peres
Este trabalho pretende demonstrar, a partir da visão de Letícia Vidor de Souza Reis, como o samba tivera em seu desenvolvimento a eminência da cultura popular em um primeiro momento, sendo posteriormente cooptado como símbolo nacional. Para tanto, cabe salientar que nesta manifestação cultural somam-se diversos aspectos, sejam eles sociais, políticos e econômicos. A compreensão quanto ao desenvolvimento desta expressão cultural enquanto centrada no processo de consolidação da República é o epicentro deste trabalho. Para tanto, faz-se necessária o entendimento acerca dos espaços de sociabilização e trocas culturais entre os diversos segmentos sociais, no qual o elemento negro toma caráter central. Entretanto, não é intenção deste trabalho discutir e problematizar o conceito de cultura, o qual para nós em linhas gerais se resume em um processo de ressignificação constante dos hábitos, práticas e manifestações cotidianas as quais correspondem também a uma “troca” destes elementos entre os diversos segmentos sociais. Em outras palavras, como Carlo Ginzburg define a ideia de circularidade “(...)um relacionamento circular feito de influências recíprocas, que se movia de baixo pra cima, bem como de cima pra baixo”(Ginzburg)
O desenvolvimento urbano no início de século XX caracterizou o que fora chamado por Nicolau Sevcenko de os dois Rios de Janeiro, um sob o prisma da Regeneração e outro do “labirinto das malocas” refletiam quase que instintivamente sob o contexto da época no âmbito das relações sociais. A presença do elemento negro, nos espaços urbanos, causava em parte da população certa indignação, visto que ambos os segmentos desfrutavam dos mesmos espaços urbanos de sociabilização e vivência, que a partir do contraste gerado de ordem racial, espacial ou econômica faziam-se sentir nas diversas manifestações de cunho oficial, tais como festividades cívicas e religiosas, e populares, festas, batuques entre outros. Elementos do contraste social que, aos poucos, ainda que (as elites, ou melhor, parte dela) se quisessem estabelecer uma dinâmica dos centros urbanos própria sem a presença indesejada fundamentalmente dos grupos de herança africana, o que passava a se constituir cada vez de forma mais incisiva era a presença destes setores. O fato é que o país passava a engendrar-se na modernidade e com esta houve diversas modificações na produção e assimilação de cultura no cenário urbano. Neste ínterim começaram a se delinear diversas manifestações culturais, de diferentes setores sociais que galgavam seu espaço caracterizando a eminência de alguns gêneros e expressões musicais que neste processo passaram a se deslocar dos espaços privados e inserir-se gradativamente ao âmbito nacional.
Neste sentido, como propõe Ana Maria Kiefer, em se tratando do projeto de nação que se pretendia construir, ainda no século XIX, em confronto com o que de forma concreta passava a se configurar como expressão musical tipicamente brasileira,
“Esqueceram-se de olhar para o próprio quintal onde espontaneamente, nas mãos das classes menos favorecidas, violões, flautas, clarinetas e demais instrumentos que estivessem disponíveis continuavam a misturar modinhas, lundus, chulas, valsas, polcas e a tecer a comédia musical urbana.” (Kieffer, 2007, p.210)
Instituía-se, portanto, mesmo entre confronto das culturas erudita, na qual se projetava a ideia de nação, e popular, o qual de forma quase natural constituíra-se o referencial de cultura popular identificado já no século XX como símbolo nacional. Ainda neste projeto de nação, forjado por instituições como Instituto Histórico Geográfico Brasileiro (IHGB), cabe salientar a aparente ausência do elemento negro, nesta projeção, a qual não se configurou nas práticas cotidianas no espectro das relações sociais, em um tom quase comedioso. Portanto, compreende-se que o momento histórico vivido pela música popular brasileira de inícios do século XX era de indeterminação quanto à quantidade e profusão de ritmos e gêneros musicais os mais diversos, quer sejam nacionais ou internacionais, os quais disputavam a preferência do público ouvinte, mas que se faziam presentes no espaço social sem, no entanto, entrarem em oposição ou conflito uns em relação aos outros.
Desta feita, a autora nos alerta para não incorrermos no que ela denomina de anacronismo cultural, ao atribuirmos ao samba o símbolo de ícone representativo da nacionalidade brasileira por excelência, uma vez que, neste período, vários ritmos gozavam da simpatia e da apreciação do público.
Uma das grandes inovações do começo do século passado no Brasil se refere à introdução e difusão da gravação de discos, na qual a chamada Casa Édison, de matriz norte-americana, foi pioneira no ramo, se instalando no Rio de Janeiro por volta do ano de 1900. Desta feita, em 1916, tem-se a gravação de um samba de grande sucesso chamado “Pelo Telefone” que será um divisor de águas na música popular brasileira. O tema central do referido samba contribuiu para a grande repercussão do mesmo. A canção é uma espécie de sátira ao conluio entre um delegado da polícia e o jogo ilícito.
A autora dirá que é sintomático que a temática do primeiro samba a estourar nas paradas de sucesso seja justamente a revelação da cumplicidade entre a ordem e a desordem. Destarte, por este período há uma recorrente perseguição por parte da polícia aos lugares onde era tocado e cantado o samba. Entretanto, apesar da atuação policial ser marcada pela truculência, notamos uma “aproximação” de certo modo amistosa entre os sambistas e as autoridades policiais, haja vista ambos pertencerem, muitas vezes, às mesmas origens sociais.
Apesar disto, um depoimento do sambista Donga, no qual este relata um caso de uma brusca interrupção das, assim por ele chamadas, “festas íntimas”, deixa entrever como o espaço privado das classes populares era constantemente violado por ações arbitrárias da polícia.
Pensando nestes espaços privados onde o samba era tocado e dançado, nos remetemos às casas das chamadas “tias” baianas, nas quais tinha lugar uma verdadeira interação entre camadas das elites, intelectuais ou governantes, e camadas populares, sendo frequentadas por grandes figuras da época. Nas palavras da autora:
“Desta maneira, na intimidade das casas das ‘tias’ baianas (sendo a mais afamada a da Ciata), os dois Rios de Janeiro (o ‘Rio da Regeneração’ e o ‘Rio das malocas’), separados no espaço, encontram-se num ambiente festivo, devocional ou não. Ali, mundos sociais distintos se interpenetram. Cidadãos pobres, como João da Baiana que, na qualidade de artista frequenta o palacete de Pinheiro Machado, adentram através de sua arte, e ainda que parcialmente, a privacidade do lar dos mais ricos (Sevcenko, 1998b: 544-45). Aí estabeleciam-se alianças e obtinham-se favores.” (pg 10).
As discussões em torno samba também envolveram questões acerca do seu “local de nascimento”. Dentro disso, baianos e cariocas geraram diversas querelas, cada um advogando para si a paternidade deste filho que foi ganhando influência com a evolução dos acontecimentos. As primeiras disputas aconteceram ainda na segunda década do século passado, sendo que o time dos cariocas foi representado pela figura de Sinhô e os baianos tiveram como paladinos Hilário Jovino Ferreira, Donga e João da Baiana. Esses debates ficaram mais acalorados quando os nomes supracitados resolveram utilizar o samba para criticar os seus adversários. A partir disso, várias marchinhas foram criadas para difamar a oposição, sendo que tantas outras surgiram com o escopo de replicar o que já havia sido exposto.
No que tange aos meios de propagação e difusão de sambas, artistas e músicos negros no início do século XX, tem importância fundamental os chamados “Teatros de Revista”. Esse meio de propagação em massa foi um dos maiores responsáveis pela popularização do teatro e música populares, uma vez que espetáculos teatrais detinham, além de um público bastante restrito as camadas mais abastadas da população, ainda sua execução e produção era hegemonizado por companhias teatrais estrangeiras, principalmente de origens francesa e italiana. Isso se devia ao fato que a elite brasileira ainda detinha no seu imaginário o padrão artístico da Europa Ocidental como referência no que tange a apreciação artística.
A maior divulgação da dramaturgia e música advindas das camadas subalternas da população gerou duas consequências principais: primeiro que a produção artística começou a dar ênfase em tipos sociais mais familiarizados com a realidade brasileira, principalmente os que surgiram após a recente urbanização do Rio de Janeiro, tais como a mulata, o capadócio (depois chamado malandro), o guarda, o funcionário público etc.; segundo que essa divulgação em massa popularizou, em outras camadas sociais, gêneros musicais vindos dos subúrbios cariocas como o samba, o maxixe e o lundu. Para se ter uma idéia dessa propagação da música popular nos decênios de 1910 e 1920 era lançada no período anterior ao carnaval uma considerável tiragem das chamadas “revistas carnavalescas”, que tinham o papel de auxiliar na difusão dos sambas a serem cantados e tocados no carnaval do ano em que a tiragem fora publicada.
Foi o teatro de revistas que lançou a primeira grande intérprete de sambas, Araci Cortes. A cantora, conhecida como a “Linda Flor”, demonstrava grande sensualidade com seu requebrado e sapateado, marcas da intérprete. Com isso, ela auxiliou na consolidação do tipo mulata dentro do samba brasileiro e, posteriormente, virou uma representação da brasilidade. Além disso, o tipo-mulata auxiliou a abordar outro tema muito comum nos centros urbanos: as relações afetivos sexuais interétnicas.
Com a concorrência do cinema e do rádio, o teatro de revistas foi perdendo força e mercado, sendo isso responsável pela perda de influência desse meio de difusão de informações.
No que se refere a grupos musicais que auxiliaram na propagação do samba, tanto no Brasil quanto no exterior, Os 8 Batutas - grupo formado em 1919 - tiveram grande importância como promotores da divulgação do samba. Sua simples composição, que contava com quatro negros, já foi motivo para que fossem realizadas várias contestações. Entretanto, o talento dos membros desse grupo lhe rendeu vários amigos, sendo que alguns deles pertenciam às classes mais abastadas da sociedade. Dessa forma, esses contatos puderam oferecer recursos financeiros à eles para que viagens pelo Brasil e pelo mundo pudessem ser feitas, como o intuito de divulgar a sua arte. Em uma dessas, os 8 Batutas foram parar em Paris, aumentando as altercações em território brasileiro acerca da questão de até que ponto eles poderiam ser considerados como representantes da música nacional. Como consequência houve um racha na opinião brasileira: alguns aceitavam que os 8 Batutas como representantes da música brasileira e outros não concordavam com isso.
O certo é que, com o passar do tempo, o samba foi ganhando cada vez mais e mais adeptos, talvez pela sua grande receptividade em vários círculos sociais, talvez pelas formas de protesto que eram inseridas nas canções. Com o fim da Primeira República e com a ascensão de Vargas, o samba será utilizado pelo governo para construir uma aproximação entre este e o povo. Assim, na esfera política-institucional houvera uma apropriação do samba, gênero musical tão comum entre as classes mais baixas, para mostrar sua proximidade e fidelidade para com a base da pirâmide social. Este gesto, somado a tantos outros, renderam ao governo do período a alcunha de “populista”.
Texto: REIS, L. V. de S. “O que o rei não viu”: música popular e nacionalidade no Rio de Janeiro da Primeira República. Estudos Afro-Asiáticos, 2003,vol. 25, nº2, pg 237-279.
Referências bibliográficas
GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 2006.
KIEFFER, A. M. A integração do negro na sociedade de classes. São Paulo: Dominus, Editora da Universidade de São Paulo, 1965. Vol. 1.